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Andanças de uma Dama

Norma Telles

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Foi na primavera de 1993, quando as flores enfeitam os sopés das colinas da região do vêneto, que Freya Stark exalou seu último suspiro após uma longa e celebrada vida de cento e um anos. Nascera na Inglaterra, em 1882, e morreu Dame Freya, título de posição para mulheres equivalente a ‘Sir”, reconhecida como viajante intrépida, escritora de sucesso, mulher inteligente e de inesgotável energia e vontade de viver. Desde a infância morou na Itália e foi lá que resolveu ser escritora e viajante. Conta como tudo começou:

Freya Stark

“Em meu aniversário de nove anos, uma tia com muita imaginação me presenteou com uma cópia das Mil e uma noites e suponho que essa tenha sido a causa original da inquietação. Uma pequena fagulha, que não fora cultivada nem notada, se acendeu e secretamente se alimentou de sonhos […] sopraram-na até que se tornou uma chama clara o bastante para iluminar meu caminho através dos labirintos da Arábia e, eventualmente, para me fazer aportar na costa da Síria no final de 1927 (Stark, 2001:xxi)”.

Os anos que decorreram entre esses dois acontecimentos, o presente encantador e a chegada à Síria, foram marcados por deslocamentos familiares e muitas leituras sobre viagens e sobre o Oriente médio. A família Stark era formada por dois primos irmãos, Charles e Flora, artistas, e por suas duas filhas, Freya e Vera. O romance familiar narrava com detalhes o nascimento prematuro da filha mais velha, em Paris, sem que os pais estivessem preparados, o que obrigara amigos fieis a saíram em busca de roupinhas para o bebê naquele gelado 31 de janeiro de 1893.

Não se sabe se Freya ficou sabendo que era filha ilegítima, que seu pai não era o querido Charles, mas um americano de Nova Orleans, Obediah Dyer. Isto porque só recentemente a biógrafa de Stark recebeu documentos, e uma carta endereçada à ela, sem indícios de ter sido lida, contando que, ao que tudo indica, era fruto de um affair de Flora com um americano, durante uma viagem pelo sul da Itália, por Torrento e Capri, Pompeia e o Vesúvio. Os documentos e a carta narram em detalhes as peripécias do nascimento da menina em novembro de 1892, em Basingstoke e não em Paris no dia da comemoração oficial, 31 de janeiro de 1893 (Geniesse,2001:363).

A segunda filha do casal nasceu na Itália onde, um ano após o nascimento da primeira, os pais haviam se estabelecido em Asolo, pequena vila perto de Veneza, por onde passaram muitos artistas. Um ano depois, porém, o casal se mudou novamente e essas andanças de lá para cá continuaram durante anos. “Nossa vida errante nos tornou precoces e bastante resistentes (apud Geniesse, 2001:22)”, conta Stark em suas memórias. Recorda também como aos quatro anos resolveu ir viver perto do mar, pegou sua capa e saiu pela rua; quanto mais se afastava de casa, mais a estrada lhe parecia longa e solitária e foi um alívio quando o carteiro a reconheceu e levou de volta.

Flora Stark, a mãe, era muito bonita e bastante autoritária; tomava conta de tudo, das crianças, dos empregados e talvez do marido; do jardim, passando pela cozinha e indo até as salas das várias casas. Ela foi também a pessoa que Freya, até tomar o navio que a levou à Síria, mais admirou e amou, aquela com quem em criança e jovem queria se parecer. Robert, o pai, muito querido pelas meninas, gostava que fossem corajosas e, como a esposa, favorecia uma educação estoica.

De repente, sem mais, Flora resolve abandonar o marido e estabelecer um negócio com o Conde Mario de Roascio, com o qual provavelmente tinha um caso amoroso. Ele era anos mais moço do que ela – tanto assim que se casaria com Vera, sua filha caçula no futuro. Flora e o Conde foram morar em Dronero, Itália, onde estava estabelecida a fábrica que iriam tocar, mas cada qual tinha sua própria residência. Flora alugou uma vila e levou as meninas com ela; a vida para as pequenas nunca mais foi a mesma, as meninas passaram dificuldades de toda a ordem e viveram solitárias. Um amigo da família que comprara uma vila em Asolo, visitava Freya e Vera e lia para elas novelas de Walter Scott que Freya adorava. Logo ela lia de Shakespeare a Kipling, Keats, Shelley e Byron assim como os viajantes e os orientalistas que a fascinavam com seus retratos de um certo Oriente.

Foi um pouco antes de seu décimo terceiro aniversário, em 1905, que Freya sofreu um terrível acidente. As irmãs foram visitar a fábrica do Conde, Freya estava com os cabelos soltos e um golpe de ar levantou-os e eles ficaram presos na grande roda de ferro de uma das máquinas. Ela foi lançada violentamente para o teto, seu corpo agitado horizontalmente e seus pés batendo em um pilar a cada volta da roda. Isso deve ter durado segundos, mas para Freya, foi toda uma vida. Ao invés de desligar a eletricidade, o Conde agarrou a menina e puxou-a pelas pernas, arrancando parte do cabelo, couro cabeludo e a orelha direita; a pálpebra direita foi afastada e todo tecido ao redor da têmpora exposto. Ela então foi colocada em uma maca, sangrava muito e sentia dores insuportáveis. Quase morreu, sofreu intensamente; tentaram um enxerto, não deu certo e então extraíram, sem anestesia, pele da parte de dentro de suas cochas para o enxerto. Depois de meses de provação, voltou para casa onde após longa convalescença, com muitas leituras, se recuperou. As cicatrizes externas foram melhorando com o tempo e com os disfarces que ela empregava, as internas talvez nunca tenham desaparecido totalmente.

Freya mal frequentou a escola porque começou em 1911 e logo precisou parar por causa da Guerra. Supriu sempre essa lacuna com intensas leituras, principalmente dos exploradores das terras árabes que sonhava conhecer, fantasiando que um dia o mundo ouviria falar dela “nos desertos da Arábia descobrindo cidades soterradas (apud Geniesse, 2001:4)” como escreveu em uma carta ao pai. Não só lia sobre o Oriente Médio como escutava atentamente as discussões dos mais velhos sobre conflitos entre os países da Europa pela partilha das colônias e ainda encontrou tempo para estudar árabe. Durante a guerra tornou-se enfermeira, manteve um diário da experiência e enquanto trabalhou em um hospital de Turim, no pós guerra, quando grassavam enfermidades como tifo e a devastadora gripe espanhola, começou a escrever contos que já mostravam seu talento. A seguir, convenceu o pai a ajudá-la a comprar uma casa perto de Dronero para cultivar flores. Afinal, conseguiu algum dinheiro e embarcou em um navio de carga para a Síria.

SÍRIA E LÍBANO

Damasco está situada no oásis de Gutha, à margem do deserto, cercada de pomares com figueiras, romãzeiras, amendoeiras e damasqueiros. Lugar muito admirado, mas, escreve Stark, “se fosse possível comparar os dois, diria que os jardins de Damasco não são tão belos quanto o campo inglês na primavera. Mas, não se consegue comparar friamente, porque o deserto dá ao primeiro um significado de encantamento (Stark, 2011:108)”.

O local era habitado há mais de seis milênios e desde a época dos assírios desfrutava de fama e prestígio; fora conquistada por Alexandre, o Grande que a tomara de Dario, rei dos persas e destruída ou construída por outros tantos invasores ou reis durante o transcurso dos séculos. Quando Freya ali chegou, em 1928, a cidade era uma sombra apagada do antigo prestígio e grandeza. Rebeliões recentes, dos drusos, tribos e grupos religiosos, haviam inflamado toda a Síria contra a ocupação francesa; então os invasores lançaram muitas bombas contra os revoltosos. Os franceses venceram, mas o ressentimento contra eles permaneceu.

Damasco, para Freya, era tudo que sempre sonhara desde a leitura das Mil e uma noites, juntava o belo com a sedução do Oriente. O calor era intenso, o frio também, mas seu treino estoico na infância haviam-na preparado bem, ela começou a fazer excursões pela cidade, maravilhada, e logo percebeu que podia muito bem passear sozinha sem ser incomodada. A princípio, como não tinha dinheiro bastante para pagar hotéis, instalou-se na casa de uma família árabe cristã, os Khalil, que havia sido recomendada por missionários seus conhecidos. Suas andanças pela cidade deram o que falar entre os missionários e logo o desejo de Freya de evitá-los se tornou um artigo de fé, “eu realmente acho àquelas senhoras sufocantes. Mesmo as mais jovens parecem ter deixado que lhes fosse extraída toda alegria de viver e só pensam em suas vidinhas estreitas… um caminho para viver com correção. Precisei empregar todo meu autocontrole para não dizer coisas erradas o tempo todo, e mesmo assim, elas me olhavam como se eu fosse unha e carne com o diabo, senão o próprio […] Sofrem de estagnação cerebral, e com certeza isso com o tempo provoca estagnação da alma. Sentir, pensar e aprender – aprender sempre: com certeza isto é o que é estar vivo e ser jovem em sentido real ( apud Geniesse, 2001:63)”, escreveu em carta a amiga.

E foi então que conheceu o deserto, conduzida por membros da tribo El Azm um dos clãs aristocráticos da Síria. O jovem xeique e sua irmã, vestidos com roupas locais, eram educados e estavam envolvidos na melhoria da vida dos aldeões. Eles foram ótima companhia para Freya que decidiu que os verdadeiros árabes eram os beduínos e não aqueles que vivam nas cidades. Este era um ponto de vista defendido por muitos viajantes europeus desde a era Vitoriana. Ao enxergar as tendas levantadas no deserto Freya foi tomada por grande emoção...

“Camelos surgiram à nossa esquerda: primeiro só alguns, então mais e mais, até que todo um rebanho foi se mostrando, uns quinhentos ou mais. Eu desci e fui até o meio deles para fotografar. Os dois líderes beduínos, vestidos magnificamente, que se empoleiravam lá em cima e balançavam lentamente com o movimento de suas bestas, gritaram alguma coisa para mim, mas o árabe dos beduínos está além da minha compreensão. Mal consigo descrever a maravilha dessa visão: era como se subitamente estivéssemos na aurora do mundo […] Eu sentia um certo êxtase entre eles. Parecia que não estavam tanto se movendo como deslizando…(apud Geniesse, 2001:64-64)”,

... escreveu em carta a Penelope Ker, acrescentando que deixara o deserto com a certeza que precisaria voltar, que precisava ver mais dos “grandes espaços”. Geneiesse pensa que essa afirmação foi mais do que a expressão de um desejo, foi um voto que Stark passou toda uma vida – confrontando medo, solidão, enfermidades, desconforto e perigos – para cumprir. Stark passou quase um ano na Síria e no Líbano aprendendo árabe o que foi crucial para suas viagens.

A MONTANHA DOS DRUSOS

Venetia Buddicom, uma amiga com quem já viajara outras vezes, foi encontrá-la em Damasco depois de uma estadia na Índia e ao chegar tudo estava pronto para uma aventura pelas terras dos drusos, conhecida como Jebel Druze, ou Montanha dos Drusos, região que ainda estava sob lei marcial dos franceses devido as rebeliões. Todos haviam assegurado às viajantes que essa era uma expedição totalmente impossível, além do mais eram inglesas numa colônia francesa. Mas nada as fez desistir. Montadas em burricos, balançando em selas de madeira ao som das contas azuis que os animais levavam como colares em torno do pescoço, elas viajaram pela paisagem árida que conduzia à região dos drusos.

Saíram bem cedo de Damasco, para não chamar atenção da polícia colonial; levavam provisões e eram guiadas por um druso, Najm. Ele não queria parar por longo tempo para descansos por causa de bandidos ou de membros de tribos locais que poderiam atacar; então prosseguiam a passos largos rumo a aldeias onde pediam hospedagem para a noite. Freya se espantou com a altura e ar digno dos drusos a despeito de sua aparência de piratas com cachos presos em rabos de cavalo e olhos pintados com kohl. Muitos deles usavam uniformes militares europeus ou turcos conseguidos em guerras e tinham fama de serem guerreiros aguerridos. As mulheres também eram grandes, balançavam saias superpostas em baixo de longos véus. A maioria dessas pessoas nunca vira um europeu, que dirá duas mulheres viajando sozinhas, mas todos foram sempre muito corteses nessas terras impenetradas que habitavam há milênios.

Os drusos formavam uma comunidade fechada, um grupo homogêneo, dominado por famílias aristocráticas que casavam entre si e mantinham fortificações nas montanhas. Suas crenças eram muito bem guardadas, e só alguns sábios conheciam todos os seus meandros; o livro que continha os princípios que orientavam suas vidas era chamado Livro da Sabedoria. Pertenciam a um ramo herético do ismaelismo que, por sua vez, era uma heresia do xiismo formada a partir de um conflito pela sucessão em 760. Missionários haviam se dispersado e um deles, chamado al-Darazi, cerca de 1019, foi para a Síria e a ele os drusos devem seu nome. Para Freya este era um grupo que merecia ser estudado; os drusos pareciam-lhe intrigantes, seus cultos obscuros.

Chegaram enfim ao sopé de Jebel Druze, no centro do território daquele grupo, e conseguiram abrigo em uma vila. Mal se acomodaram no chão sobre peles, entraram os policiais militares franceses casa a dentro e levaram presas as duas amigas, suspeitas de espionagem para os ingleses. As moças conseguiram, após alguns dias, convencer os oficiais que eram viajantes mal orientadas, até mesmo meio tolas, perdidas naquela região devido aos erros do Guia Cook. Os oficiais acabaram convencidos e até penalizados por tanta ingenuidade, assim um oficial ainda lhes ofereceu uma recomendação ao xeique Ahmed el Hajari, de poderoso clã árabe, que Freya de outro modo jamais teria encontrado.

Ela também aproveitou os dias no quartel francês para refletir sobre as diferenças entre ingleses e franceses na condução de suas colônias, criticando os primeiros e elogiando os segundos, tema esse que desenvolveu em um artigo que publicou em 1928, em Londres, sob um pseudônimo, Tharaya, nome árabe para a brilhante estrela no centro das Plêiades e que significa “Ela que ilumina o mundo”. Stark escolheu usar pseudônimo porque temia a reação dos franceses e pretendia voltar em breve à Síria.

BAGDÁ

Foi no final de outubro de 1929 que Freya chegou a Bagdá, cidade que hoje não reconheceria feita em ruínas por guerras recentes. O mandato britânico sobre o novo estado era relativamente recente; durante os anos em que lá esteve de forma intermitente, testemunhou o surgimento e o desaparecimento do envolvimento britânico no novo país, e os primeiros momentos de sua independência.

O calor sem dúvida era o mesmo de hoje, intenso, assim como as águas do Tigre que continuam barrosas e os traços da antiga história gloriosa da cidade que ainda podem ser vistos aqui e ali. Ao norte ruinas das cidades assírias, Nínive, Ashur; ao sul perto das margens do Eufrates ficavam as ruínas de Uruk e Ur dos sumérios; Babilônia ficava perto e também Kish, cidade mesopotâmia tida como anterior ao dilúvio bíblico. Bagdá fora construída em 762 quando um califa abássida mudara a capital de Damasco para lá e seguiu-se um período de extraordinário florescimento cultural o que a tornou famosa e celebrada em vários contos das Mil e uma noites. E era uma cidade cara, na época em que Stark lá aportou, por isso ela, não podendo pagar os preços comuns para habitação, estabeleceu-se em uma vila próxima.

“Acordar completamente só em uma cidade estranha é uma das sensações mais agradáveis do mundo. É estar cercado por aventura. Não se sabe o que nos aguarda, mas nos deixamos ir, se somos sábios e conhecemos a arte de viajar, pela corrente do desconhecido e aceitamos o que quer que venha no espirito em que os deuses possam ter nos oferecido (Stark, 2011:11)”.

Freya logo ficou fascinada pela diversidade de tipos étnicos e de seitas: curdos do norte, armênios, assírios, judeus, caldeus, yezidi, cristãos, gregos, turcos, persas e árabes do deserto e se espantou com o grande número de xiitas. Essa foi a época em que a partição colonial dos poderes europeus juntou grupos que se estranhavam em uma nova nação, o Iraque, sob mandato inglês; alguns grupos pretendiam ter independência própria enquanto outros eram muito hostis entre si (Geniesse, 2001:94).

A primeira casa que tomou não sendo satisfatória, Freya logo se mudou para outra, cercada de palmeiras, que muito a agradou e onde além do prazer de acordar só em local desconhecido, passou a ter lições de línguas inclusive o persa. “Meu novo lar é na casa de Elias, o Carpinteiro, e sua esposa Najla. Fica no lado oeste do Tigre, com cinco janelas abrindo para o rio em direção a antiga Residência Britânica (Stark, 2011:38)”.

Stark sempre apreciou viver com as pessoas do lugar em que estava ao invés de ficar com o grupo de oficiais e administradores ingleses e suas esposas, o que lhes dava o que falar, e isso a deixava deprimida. Ao mesmo tempo, sempre foi defensora do Império britânico, e adotava muitas de suas posições. Os murmúrios a respeito dela ser uma espiã eram outra constante. Em Bagdá visitou os sítios arqueológicos, os mercados e os santuários, as tribos do sul no deserto, e decidiu se aventurar para localizar as ruinas da fortaleza dos antigos Assassinos, seita que segundo as legendas, por volta do final do século XIII, diziam, impusera o terror ao Oriente Médio. Pretendia também percorrer parte do desconhecido Luristão para traçar um mapa e buscar sepulturas e peças de arte em bronze.

O ROCHEDO DE ALAMÛT

Alamût e a seita dos Assassinos se tornaram conhecidos na Europa através da descrição de Marco Polo ao narrar suas viagens. Mais tarde, quando Felipe o Belo, muito endividado com os Templários – ordem fundada por volta de 1096 quando da primeira cruzada – resolveu prender os cavaleiros e acabar com a ordem, correram muitas versões das possíveis ligações entre os Templários e os Assassinos. Essas estórias medievais poderiam ter sido esquecidas, não fosse por renomados acadêmicos do século XIX especializados em estudos do Oriente Médio, terem validado as afirmativas e etimologias de Polo. Um roman noir foi tramado em torno de Alamût e dos Assassinos, na ausência de dados ou textos autênticos e, como em tantas outras ocasiões em que o que se desconhece é perigoso, crimes e falta de moral foram imputados a essa minoria filosófico religiosa.

Um orientalista austríaco, von Hammer-Purgstall, escreveu um livro em 1818 no qual projetou sobre os antigos moradores de Alamût sua obsessão por “sociedades secretas”, supondo que os ismaelitas praticavam todos os crimes que na Europa eram atribuídos por alguns aos maços e por outros aos jesuítas. Por sua vez, o mais prestigiado orientalista, diretor dos estudos especializados na universidade francesa, Silvestre de Sacy em seu Exposé de la religion des Druzes (1838) sustentou com paixão a explicação etimológica da palavra “assassino” como derivada de Hashshâshîn, “aqueles que consomem haxixe”, ratificando a etimologia fantasiosa empregada por Marco Polo e da qual derivou a palavra assassino que entrou para as línguas europeias com o significado que conhecemos.

As fantasias em torno da ordem dos Assassinos não se sustentam depois dos inúmeros estudos do último século que se valeram de fragmentos restantes da grande biblioteca de Alamût, destruída pelos mongóis, e alguns manuscritos indianos. Esses estudos mostram que a palavra “assa” significa “fundamentos”; Hassan-i-Sabbah gostava de chamar seus discípulos A sasiyun, o que significa pessoas que são fieis aos fundamentos da fé. Os que se devotam ao conhecimento dos textos ismaelitas e o sentido da filosofia partem da exegese desenvolvida em um comentário ao dito do Profeta: “entre minha sepultura e a cadeira de onde prego, existe um jardim entre os jardins do Paraíso”.

Essa proposição não deve ser entendida no sentido literal, e – só um exemplo da incompreensão de Polo e outros – o jardim do Paraiso do qual se fala é o jardim da verdade gnóstica, ou campo da Ressurreição onde o iniciado ressuscita para uma vida incorruptível. Atender a ‘convocação’ então é entrar no “paraíso da potência”. Foi dessa noção distorcida que se propagaram as acusações contra os Assassinos que teriam na fortaleza do Rochedo um jardim, um paraíso de “orgias”, embaladas por haxixe o que tornava os homens zumbis obedientes a seu chefe, o Homem da Montanha. Hoje se sabe que era também um movimento político de resistência anti-turco, uma luta travada em circunstâncias trágicas. “Mas a filosofia e a doutrina espiritual dos Ismaelitas não tem nada a ver com as “historias de assassinos (Corbin,1986:145)”.

Freya Stark partiu decidida a encontrar a fortaleza do rochedo, bastião dos Assassinos, levando consigo o livro de Marco Polo e, sem dúvida, impulsionada pelas exposições de Sacy, pois apreciava e confiava nesses eruditos. Sacy está associado ao orientalismo moderno, como o define Said, por ter sido o primeiro presidente da Société Asiatique (fundada em 1822), e também por sua obra ao copilar e dar forma a um corpo de textos sistematizados que uniam tradição erudita às praticas oficiais dos administradores coloniais. Sacy produziu todo um campo de estudos; como europeu escolheu textos árabes, anotou-os, codificou-os e comentou todos eles. “Com o tempo, o Oriente como tal tornou-se menos importante que aquilo em que o orientalista o transformava (Said,1990:136)”. As antologias que publicou foram utilizadas por gerações de europeus e todos os arabistas que se sucederam traçavam sua linhagem a partir dele. O orientalismo pertence à inteligência e erudição europeia desde que seja recriação do orientalista e produziu um discursos científico capaz de legitimar uma autoridade sobre o Oriente.

Stark tomou as vacinas e se abasteceu de quinino, pois na região para onde se dirigia havia muita malária, e rumou para a cordilheira de Zagros, partindo numa caravana maior do que a que imaginara e conduzida por um guia seu conhecido. Inicia seu relato da expedição contando quem eram os Assassinos:

“Os Assassinos eram uma seita persa. Um ramo do Ismaelismo, que era um ramo do Xiismo, que ainda constitui praticamente toda a Pérsia […] Mas não é a teologia que é interessante, mas sua política. Eles foram explorados por uma família persa capaz e inescrupulosa estabelecida na Palestina, que se devotaram a minar e gradualmente destruir todos os tipos de fé através de um sutil sistema de iniciação que em todos os graus e estágios era cheio de superstições e crendices até que em suas altas fileiras, culminava em total pensamento livre. Estabeleceram o principio de obediência para um dos daquela família como sendo depositário da Sabedoria Divina […]”

Nota breve, em um aforismo enigmático Nietzsche em A genealogia da Moral, comenta como verdadeiro o livre espírito aos Assassinos: “quando os cruzados se encontravam no Oriente com aquela invencível ordem […], com aqueles espíritos livres […] lograram, não sei como, algumas indicações acerca do seu pasmoso símbolo em que se professava: ‘Nada é verdadeiro, tudo é primitivo’. Esta era a verdadeira liberdade de espírito (Nietzsche, 1976:XXIV)”.

Freya Stark prossegue sua narrativa:

“Um deles entrou em contato com Hasan-i-Sabbah que se juntou a seita no ano de 1071 e se tornou o grão-mestre dos Assassinos. […] O jardim secreto onde ele drogava e ligava a si seus seguidores se tornou conhecido na Europa através das crônicas das Cruzadas […] eles degeneraram em assassinos profissionais […] Na Pérsia o exercito mongol […] tomou a fortaleza do Rochedo […] Há muito eu desejava ir até lá. Havia obstáculos e um deles era não conseguir encontrar um mapa. O distrito de Alamût existia, mas não havia nenhuma vila assinalada, como de fato não existe tal aldeia, como descobri quando cheguei ao vale (Stark, 2011159-161)”.

Durante dez dias escalou precipícios rochosos, atravessando riachos, deslumbrada com as tulipas e jacintos e foi recebida e bem tratada nas vilas onde pernoitou.

“O sol brilhava em uma solidão agradável. Não encontramos nenhum ser humano a não ser dois homens com um bastão e calças largas de algodão, viajantes vindos das montanhas. Uma águia em uma rocha voltou sua cabeça chata e olhos amarelos para nós, mas não se moveu até Ismail […] assustá-la com uma pedra (Stark,2011:166)”.

Freya gostou dos acompanhantes; era a primeira europeia com quem eles se deparavam e a tratavam com “tranquila cortesia”, como igual. Eles continuaram a subir pelas escarpas das montanhas de pedra, cada vez mais alto, o ar mais leve e rarefeito, olhando as flores delicadas por todo o lado. Nenhuma área cultivada à vista, nem sombra de trabalho humano, com exceção das tendas negras dos nômades ao longe. Mais a frente encontraram o tráfico dos carregadores de arroz do Cáspio através dos passos, arroz esse, conta Stark, que os chineses já mencionavam no segundo século, carregado do mesmo modo. O mapa que levava tinha apenas duas montanhas assinaladas e nomeadas, por isso ela seguia observando e anotando para depois poder traçar um mapa detalhado da região.

“À noite nas aldeias eu mostrava meu mapa para os homens acocorados em torno do samovar, e explicava como ele é feito gradualmente com o relato de viajantes que informam o que sabem pelo bem de outros como eles […] eles entendiam e tomavam muito cuidado em não errar (Stark,2011:172)”.

Descrevendo a paisagem através de uma visão grande angular ou anotando acidentes geográficos e seus nomes em um mapa até então em branco, a escritora age como colonizadora, visto o amplo papel que a escrita desempenhou no processo de expansão colonial. “De fato, as estruturas da escrita e as do poder político nunca podem ser totalmente distinguidas uma da outra (Spurr,1993:93)”.

Stark dormia junto aos aldeões, nos tetos das casas dos anfitriões, enquanto os jovens sentavam em fileiras nos telhados em frente, “a boa hospitalidade da montanha” nunca lhe falhou embora as pessoas fossem extremamente pobres. Afinal avistaram as ruinas de uma velha ponte de tijolos velhos que ainda indicava o caminho; os cânions estreitos por onde corriam fios de água, formavam uma muralha que escondia e protegia o vale dos Assassinos. Uma das montanhas Freya identificou com a que Marco Polo mencionara, foi uma alegria para a viajante se deparar com o local descrito por ele. Ela caminha pelas montanhas relembrando a história popular do local até a destruição da fortaleza pelos mongóis no século XIII. Stark atingira seus dois objetivos: localizar o Rochedo de Alamût e explorar e mapear a região.

Ao fazer a cartografia detalhada dos acidentes geográficos, das estradas ou trilhas, ela contribuíra para a ciência e preenchia espaços vazios nos mapas do Governo de Sua Majestade. Quando partiu de volta para a Itália, em 1930, diziam que “miss Stark era uma exploradora ‘competente’ (Geniesse,2001:108)”, e em 1934, quando publicou o livro sobre o Vale dos Assassinos foi lançada ao círculo de grandes autores, convidada e festejada pelos círculos londrinos. Jornais diziam que o livro nascera um clássico da literatura de viagem e até Lawrence da Arábia comentou que ela era “uma criatura galante…é surpreendente como o livro ganha vida! (Geniesse,2011:xiii)”.

LURISTÃO

“As pessoas mais bonitas em Bagdá são os luris de Pusht-i-Kuh (Stark, 2001:43)”, e entre as civilizações perdidas o Luristão é “ainda um nome encantado. Seus rios nos mapas são linhas azuis pontilhadas e a posição de suas colinas uma questão de gosto. É ainda um país para o explorador (idem:3)”. Os luris, que descendem de tribos que ali se fixaram entre o terceiro e quarto milênios A.C, ainda hoje vivem nos montes Zagros, no centro do Irã. Metade deles é seminômade, embora a maioria viva em aldeias fixas e só durante pouco tempo fique em suas tendas de pele de cabra negra. Os xás da dinastia Pahlavi, que assumiram o poder em 1925, começaram a obrigar os luris a morar em casas o que ainda não foi totalmente conseguido.

A arte dos luris floresceu especialmente entre os séculos XII e XIII a.c., especialmente bronzes e arreios de cavalos. Muito comentados esses eram objetos que Freya pretendia descobrir. Ela é modesta, diz que penetrou muito pouco na região e, portanto, não conseguiu mapeá-la como desejava, mas os ingleses agradeceram seus desenhos. Conseguiu ver “os luris em suas roupagens medievais – o casaco branco amarrado na cintura com mangas caindo em pontas do ombro e gorros de feltro brancos sobre os cachos que escondem suas orelhas (Stark, idem)”. O xá começara a exigir que se vestissem como ele e por isso Stark, que como os próprios não concorda com a imposição, descreveu em detalhes seus trajes prestes talvez a desaparecer.

Stark viajou quinze dias pela região, depois de uma segunda estadia em Bagdá. Ela e seu guia Hajji montados em pôneis seguiram pelo Passo Varazan. Percorreram dezenas de picos, abismos e vales, ficaram em aldeias onde foram, como sempre, bem recebidos e Stark descobriu que as tumbas que buscava, aquelas onde os homens estavam enterrados com seus cavalos, não estavam na região que percorria, mas em outra de outra tribo luri, região à qual era então impossível chegar. De qualquer modo ela coletou as informações para repassar para a Royal Geographic Society e também fotografou a região. Primeira mulher Ocidental a entrar no Luristão, ela voltou com relatórios para os arqueólogos e um mapa detalhado para submeter ao War Office. No final de outubro estava de volta a Bagdá onde passou dois anos muito felizes antes de retornar à Europa.

INTERREGNO

Freya Stark voltou para a Itália reconhecida como especialista no Levante, Síria, Iraque e Pérsia ao mesmo tempo em que refletia a respeito dos povos colonizados, indagando-se se deveriam governar a si mesmos e concluiu que sim, que muitos prefeririam ter o comando de suas vidas mesmo que isto implicasse abrir mão de inovações Ocidentais. Ela sugeria uma nova forma de imperialismo “ que mantenha um olhar benigno nos antigos protegidos mas que não governasse mais ativamente (apud Geniesse,2001:140”.

Ela estivera fora sete anos, enfrentara todas as dificuldades e provas físicas, sofrera dezenas de enfermidades, se encantara com as regiões ainda não exploradas e ficara bastante impressionada com a sabedoria de culturas muito diferentes da sua. Após breve estadia na Itália, Stark seguiu para Londres, em 1933, onde deveria receber um premio, o Back Memorial Prize, da Real Geographic Society, por suas viagens pelo Luristão e por suas contribuições para a cartografia. Era tudo que poderia sonhar, reconhecimento e congratulações do meio que mais admirava, o dos membros daquela sociedade, especialmente viajantes, exploradores, descobridores.

Outras cinco pessoas receberam prêmios na mesma ocasião frente a uma plateia de umas cem pessoas. O Presidente ao chamar Freya disse: “Para a senhora, Miss Stark” é atribuído este prêmio como reconhecimento por suas viagens e porque nós todos aproveitamos muito seu talento literário e sua contribuição para a correção e complementação de mapas. E “embora não tenha resolvido a questão dos famosos bronzes do Luristão a senhora, de qualquer modo, encontrou uma de suas fontes e esperamos que continue a prossiga suas pesquisas (apud Geniesse,2001:148)”. E dai em diante ela desfrutou do beneplácito, algumas vezes até de verbas, da prestigiosa RGS.

Foi então envolvida pelo turbilhão londrino, convites para dar palestras, o que fazia com sucesso, convites para conhecer personalidades, comparecer a festas de todo tipo; convites para escrever e para entrevistas. Durante esse período resolveu, aos quarenta anos, fazer uma operação plástica para corrigir as consequências do acidente que sofrera aos treze e a deixara com defeitos e cicatrizes que procurava encobrir com o penteado e usando os chapéus extravagantes que se tornaram sua marca. Agora era uma pessoa pública e queria estar com bom aspecto e também aliviar as dores que ainda sentia. Internou-se, com muita discrição, em um hospital nos arredores de Londres; o processo foi doloroso e exaustivo, não podia ler e ainda sofreu uma infecção. Mas a cirurgia foi bem sucedida, ela gostou muito do resultado e imediatamente depois de deixar o hospital estava de novo ao círculo londrino de festas e palestras.

A lista de pessoas a quem foi apresentada é notável, entre elas seu novo editor, John Murrey IV de uma prestigiosa casa editorial que publicara Darwin, Livingstone, Lorde Byron e Sir Walter Scott entre inúmeros outros. O editor foi bem recompensado por inclui-la entre seus autores, naquele mesmo ano fez três edições de Vale dos Assassinos, que até hoje é reeditado. Não só ele cuidou da edição de todos os outros livros dela, com exceção dos volumes de cartas, como também ele “cuidava de seus autores”, o que no caso de Stark implicou inclusive em enviar uma banheira de folhas de flandres para o Iêmen!

IÊMEN: CAÇADORA DE RUÍNAS

Arabia Felix era o termo empregado pelos geógrafos antigos, desde Ptolomeu que criou a denominação, para a região do sul da Arábia onde hoje estão o Iêmen e Omã. A região norte do atual Iêmen e o Vale de Hadramaut formam a área mais fértil da península e na época romana era também um dos lugares mais ricos do mundo. O território da Arábia Feliz fora habitado desde a mais alta antiguidade e se tornou muito conhecido durante a época romana por ser o único produtor de mirra e de olibano ou incenso. A riqueza também vinha do porto de Áden, parada obrigatória na rota entre a Índia e Alexandria. A região era habitada por pequenas tribos e alguns reinos que se sucederam em brilhantes culturas e dos quais o mais famoso foi o da Rainha de Sabá.

Foi justamente essa terra antiga e lendária que Stark resolveu visitar para tentar encontrar antigas capitais que haviam florescido durante o período em que funcionou a rota do incenso que além dos produtos já mencionados fez circular marfim, ébano, ouro, canela, peles de macaco e penas de pavão durante uns quinhentos anos. Um marinheiro grego então descobriu os segredos dos ventos das monções e o monopólio das passagens por terra deu lugar ao tráfico marítimo. Mais tarde, depois da expansão do cristianismo por vários lugares do mundo e do estabelecimento do Islã na Arábia Feliz em 680, ainda durante a vida do Profeta, a circulação das mercadorias cessou, pois esses religiões não usavam em seus ritos a mirra e incenso como as da Antiguidade.

Stark partiu com dinheiro contado, mas esperava assim mesmo poder comprar um ou dois manuscritos, algumas roupas e joias. Desembarcou em Áden tendo preparado com cuidado essa excursão, lendo desde Heródoto e Estrabo, Plínio, Ptolomeu até a Bíblia e o Corão. Havia estudado a escrita dos Sabeus e do reino de Sabá; pesquisara em Londres e na Alemanha para saber o que havia sobre Sabá e outras cidades suas rivais. “Descobriu que tanto os Sabeus como os Himiari haviam escrito prolixamente em pedras; seus templos e edifícios eram reputados como estando cobertos de inscrições [….] Freya também se familiarizou com os hieróglifos himiariticos (Geniesse, 2001:159)”. O himiarita é uma língua que antecede o árabe na península e deriva do nome de uma dinastia que por doze séculos, entre c110 a.c. e 520, governou a região e conquistou cidades rivais. Ainda em Asolo, ela elaborara um mapa com uns quinhentos nomes de locais antigos e esperava em sua viagem conseguir traçar a rota do caminho do incenso; sabia que havia muitas ruínas pelo caminho o que a entusiasmava ainda mais. Todos os exploradores da região almejavam também encontrar o mítico tesouro de Sabá que diziam estar enterrado em algum sítio por ali.

Em junho de 1935, após um mês em Áden, Stark tomou uma embarcação para Mukalla, cidade com lindas praias, levando cartas de recomendação de pessoas importantes para o sultão local. Ele estava ausente, mas ela foi instalada em seu palácio, com todo conforto. Visitou mercados e fez provisões para o percurso; contratou dois guias, vestidos a caráter, com adagas na cintura, e cobertos com índigo que manchava as roupas brancas, mas que ela logo descobriu que protegia o corpo nu do terrível frio do deserto. Negociou quatro mulas para carregar os suprimentos e utensílios e estavam prontos para partir rumo ao norte.

Escalaram o alto jol, ou platô, ela observava as camadas geológicas, travou camaradagem com os acompanhantes cobertos de índigo, fazia as refeições com eles e tentava entender o dialeto árabe que falavam. A noite pedia para colocarem seu colchão um pouco distante do fogo para ter maior privacidade. O grupo singular, formado por Freya, um grande soldado negro escravo que o sultão a obrigara a levar, dois beduínos com um pequeno sobrinho, demorou seis dias para atingir o oásis com palmeiras protegido de Wadi Doan onde foram recebidos com tiros para o ar dados em saudação pelos beduínos locais. Freya foi escoltada ao castelo de barro do governador e entrou no harém, como costumava fazer para conversar com as mulheres. Desta feita, penetrou foi numa epidemia de sarampo.

Teve tempo de explorar o terreno em volta à procura de objetos antigos e precisou fugir de uma aldeia onde foi apedrejada por um grupo de homens e meninos. Porém, não tardou a sucumbir à epidemia e passou uma semana delirando com febre altíssima. Mal manteve consciência suficiente para impedir que lhe fizessem tratamento com ferro em brasa, e não se livrou de todas as benzedeiras da aldeia que cantavam encantamentos à sua volta. Quando conseguiu se levantar, impaciente para prosseguir, reuniu sua trupe e se dirigiu para uma terra agreste e hostil onde os infiéis não eram bem vindos. Explorou campos em torno de Hajarain e Hureidha coletando fragmentos com inscrições himiaritas e concluiu, com acerto, que havia ruinas debaixo daquele solo. Freya percorreu a região de Hadhramaut, observando tudo que surgia, especialmente a arquitetura extraordinária: torres construídas com materiais locais, pedra ou barro de acordo com a região, que atingiam grandes alturas, terminando em estreitos cones onde eram fixados chifres de íbis e orix que ela fotografou.

Em Tarim, famoso centro religioso sunita, onde foi a primeira Ocidental a colocar os pés, intrigou seus interlocutores devido seu interesse por arqueologia e permitiram que consultasse manuscritos antigos. Freya era arguta, rápida nas respostas e bem humorada o que lhe permitiu sair de várias enrascadas ou interessar pessoas, como no caso, pelo que lhe desejava saber. Foi ai que tomou conhecimento da excursão de um explorador alemão que também buscava Shabwa e ficou inconsolável, pois não se sentia em condições de continuar e tentar chegar antes dele, ainda estava muito debilitada pelo sarampo.

Nessa cidade encontrou um farmacêutico que lhe deu uma injeção e ela se sentiu mais bem disposta. Ela adquirira o hábito de se medicar e por isso levou as injeções com ela e tomou mais uma. Estava com disenteria muito forte e pensava que a malária era a responsável por sua exaustão. Misturou remédios para tudo isso e ficou malíssimo. Foi preciso ir buscar o farmacêutico que percebeu que ela estava tendo um ataque de angina e deu-lhe uma injeção no coração que lhe salvou a vida. Repousou uns dez dias no bangalô de al-Kafs’ e, certo dia, escutou o ronco de quatro aviões que tinham ido buscá-la pois o governador não acreditava que pudesse fazer o percurso de volta. Retornou então à Áden conduzida pela RAF, o que causou acaloradas discussões entre a pequena comunidade de europeus: não abusara ela da hospitalidade local? Não devia pagar pelo gasto com os aviões que a haviam socorrido?

Para ela foi um momento de desespero ter chegado tão perto e não poder continuar! Não queria desistir, mas não havia nada a fazer senão embarcar em um dos aviões e ir embora. Por outro lado, o episódio causou frisson entre seus admiradores e na opinião publica da Itália e Inglaterra; ela foi aplaudida por passageiros e espectadores quando chegou, considerada “a nossa mais ousada jovem exploradora”. A partir de então Freya “estava firmemente estabelecida na mente do público como uma viajante intrépida, ousando fazer sozinha o que poucos ousariam (Geniesse, 2001:183)”.

IÊMEN: EXPEDIÇÃO ARQUEOLÓGICA

Stark não encontrara Shabwa que só seria encontrada um ano depois por Harry St. John Philby, mas o triunfo continuou, aos olhos de todos, sendo dela, pois embora não tivesse alcançado o local, dramatizara Shabwa perante o mundo. A Itália para a qual voltou se aprontava para a guerra e para invadir a Abissínia, “acho que não vou suportar viver aqui”, escreveu a uma amiga. Para piorar a situação, sua mãe tinha simpatias pelo novo regime que ela detestava e seu cunhado era chefe dos fascistas locais. Freya partiu para Londres em busca de um novo projeto que não tardou a surgir.

Em Londres, em festas ou palestras em 1936 e 1937, ela cruzara algumas vezes com Gertrude Caton-Thomson, chamada Caton pelos amigos, uma arqueóloga e paleohistoriadora formada pela Universidade de Londres que fizera, com sucesso, escavações no Egito em 1921. Mais tarde, com uma bolsa da Associação Britânica para o Progresso da Ciência, ela fizera explorações no Zimbábue e chegara a conclusões controversas mas muito corajosas. Afirmava, contra alguns estudiosos de prestígio, a origem africana das ruinas, negando qualquer influência mesopotâmia ou grega e sugerindo a presença de sociedade africana altamente estruturada. Louis Leakey apoiou suas conclusões e eles se tornaram amigos, Gertrud foi mentora da Marie, segunda esposa daquele que se modificaria o que se entendia da evolução dos humanos. A questão africana defendida por Caton-Thomson causou polêmica entre os arqueólogos e sua posição firme granjeou-lhe respeito entre eles.

Caton estava interessada na arqueologia do Iêmen e Freya era a pessoa que podia dar-lhe informações. Organizaram uma excursão, a qual se juntou Elinor Wight Gardner, uma geóloga de prestígio que já trabalhara com Caton-Thomson no Egito. Stark conseguiu patrocínio de Lord Wakefield of Hythe, um milionário que costumava apoiar projetos aventurosos de mulheres. Gertrud levantou algum dinheiro e a RGS concedeu auxílio. Partiram em uma excursão de trancos e solavancos, disputas e desentendimentos, muitas enfermidades e também sucesso nas buscas para umas e para a outra. Em novembro de 37 estavam a caminho de Mukalla e depois rumo ao interior em um antigo caminhão cheio de gente, primeira parada Tarim, centro religioso no Hdhramaut, onde Freya havia estado há dois anos.

Gertrud não se misturava com ninguém, não concordou com Freya que se tratassem no dia-a-dia pelo primeiro nome. Enquanto Freya visitava as pessoas conhecidas no local e precisava realizar a tarefa encomendada pela RGS, penetrar e descrever a vida nativa, o que desgostava as outras duas companheiras, achavam que perdiam tempo. No entanto, era um ritual básico para manter as boas relações na região e conseguir informações e ajudas essenciais. Freya, por seu lado, considerou que Gertrud não era “uma viajante”, e deu graças por não ser uma arqueóloga. Eram três mulheres muito diferentes, com objetivos diversos e as desavenças entre elas foram se acumulando. Havia também as enfermidades que atacavam uma ou outra sem cessar. Quando Freya pediu para ser levada para uma cidade maior, pois pensava estar muito mal, as outras duas providenciaram rapidamente sua partida para o hospital em Áden. As duas cientistas que ficaram se instalaram em Seiyun e em dezembro, recuperadas, partiram para Hureida onde se estabeleceram e começaram as escavações com a ajuda de um africano grande e forte, seis homens das tribos e quatro meninos.

“Entre o final de dezembro e o primeiro de março, um templo da lua dedicado ao deus pagão Sin lentamente emergiu da areia – a primeira descoberta deste tipo a ser realizada ao sul da Arábia. Nele e ao seu redor Gertrud e Elinor também desenterraram umas cinquenta inscrições himiariticas e sabeas e santuários extramuros, alguns dos quais datados do século V antes da presente época (Geniesse,2001:213)”.

Escavaram também tumbas em cavernas, tarefa difícil porque levanta muita poeira; desenterraram crâneos que posteriormente atraíram atenção dos paleontólogos, visto serem muito pequenos, terem fraco desenvolvimento muscular, index encefálico baixo, semelhantes unicamente aos encontrados em algumas áreas do Pacífico. Elinor, por seu lado, esboçou o traçado das linhas mestras de um sistema de irrigação pré-islâmico, o que indicava que a agricultura outrora fora praticada no vale. Elas não encontraram muitas cerâmicas, mas das tumbas vieram vidro, taças curiosas e cálices altos, centenas de peças de faiança, contas e pedras semipreciosas. Até hoje o cuidado extremado com a escavação e os métodos empregados permanecem realizações importantes na arqueologia do sul da Arábia.

Freya, enquanto isso, que se curara e tivera um bom descanso em Áden, voltou para junto do grupo pois, afinal, era ela a chefe da expedição Wakefield. As duas cientistas não se alegraram, prosseguiram seu trabalho enquanto Freya visitava as pessoas e recebia diariamente inúmeros amigos para conversar. Findos os trabalhos de escavação, as três mulheres queimaram juntas um incenso de oitocentos anos que Gertrud retirara do templo da lua e então se separaram. Freya queria continuar em busca da rota do incenso e seu principal porto, Gertrud e Elinor não quiseram acompanhá-la e voltaram pelo caminho da ida rápido para a Europa.

Freya alugou vários camelos, contratou beduínos como escolta e com seu guia Qasim, rumou sul. Seguiram pela região erma e arenosa de Wadi’Amd, ela decidida a encontrar o porto de Cana, onde os antigos navios esperavam para ser carregados de mirra e incenso. Penetrando terras que o administrador colonial catalogava como “não pacificadas”, com isso querendo dizer desconhecidas para a administração inglesa, ela queria confirmar o itinerário que historiadores acreditavam ter sido a principal rota das caravanas do incenso. Olhando ao seu redor, para qualquer lado que fosse, Freya enxergava a linha do horizonte pontilhada por torres fortificadas sinistras onde sentinelas estavam de guarda.

Mas, quando paravam em algum aldeamento, os mais velhos vinham fazer perguntas a Freya, ela sempre respondia a todos: sobre como se livrar do enviado do sultão, ou enviar um representante ao residente britânico, ou a melhor maneira de assassiná-lo. Ela já estava debilitada por enfermidades anteriores e as demandas da hospitalidade local consumiram suas forças. Com o tempo, porém, se recuperou sem precisar retornar no automóvel do administrador que viera buscá-la.

Freya continuou através de uma rede de vales rumo ao mar. Guiando seu camelo ela percorreu uns duzentos quilômetros, muitas vezes viajando nove horas por dia, através de um território fantástico onde meio a ravinas e penhascos soprados pelo vento, copiou inscrições pré-islâmicas e delas deduziu, com acerto, que caminhava por uma estrada secundária da rota do incenso.

Chegando a ‘Azzan, entre o alto platô e o deserto, foi alertada a não continuar sozinha e se juntou a uma caravana. Firme em seus objetivos, não percebeu intrigas e tramas ou o perigo físico que correu por estar meio a disputas internas locais. Impávida e a salvo com imensa satisfação descobriu evidências arqueológicas suficientes para demonstrar a antiguidade do sítio. Copiou inscrições porem logo recebeu ordens de certas tribos para partir imediatamente com os ‘Azzami; solicitou um barco que lhe foi recusado em tom de ameaça. Seu grupo então partiu às pressas em plena madrugada e só depois de dezoito horas de viagem, quatorze sobre os camelos, encontraram local de refúgio (Geniesse, 2001:201-222). Na manhã seguinte Freya já navegava pelo golfo de Áden, tiritando com a febre provocada pela dengue, rumo a Europa, levando na bagagem suas preciosas notas e mapas que apresentaria na Royal Geographic Society e que seriam matéria para seus livros.

IÊMEN: SERVIÇO DE INTELIGÊNCIA

Naquele setembro sombrio durante o qual Hitler anexou a Polonia e Inglaterra e França declararam guerra à Alemanha, Stark estava em Londres e foi imediatamente convocada pelo Colonial Office a se juntar ao novo Ministério da Informação que então estava sendo organizado. O governo reconhecia suas habilidades: conhecia profundamente o Oriente Médio e falava vários dialetos árabes; era também fluente em italiano, alemão e francês, entendia o persa e alguma coisa de grego. A preocupação do Home Office era saber como os países árabes se colocariam diante das potências em conflito. Feya anteriormente alertara o residente britânico no Iêmen sobre a presença de muitos italianos por lá. A tarefa do Ministério da Informação, e de outros serviços de inteligência, era persuadir os árabes a apoiarem os Aliados, ou ao menos a ficarem neutros.

E, mais uma vez, lá se foi Stark navegando para Áden para de lá seguir em missão secreta até a medieval cidade de Sana, no alto Iêmen. A tarefa dela era escrever panfletos, talvez censurar alguns filmes e fazer as noticias da Reuters parecerem prosa para serem divulgadas pelo rádio. A viagem teria de ser como as da viajante amigável, embora a missão fosse avaliar a força da penetração italiana, descobrir se estavam recebendo algum auxilio ou armas da Itália, descobrir quais eram as verdadeiras simpatias do iman e o que fazer como contraponto à publicidade do Eixo.

Freya seguiu levando um projetor, alguns filmes escondidos; viajou de barco e depois escalou montanhas até uma capital do iman, uma fortaleza e depois prosseguiu até Sana onde ficou dois meses. O fato de ter chegado até lá foi considerado um grande feito. Os filmes foram muito apreciados e uma abertura eficaz para conversações; fazendo as perguntas certas, permanecendo de olhos bem abertos, ela conseguiu importantes informações sobre arsenais, guarnições, quantidades de café enviados para a Itália como pagamento pelas armas e uma estimativa do numero de soldados e das condições no exercito do Iêmen. No final de agosto ela estava aliviada ao deixar o lugar que, apesar de toda sua beleza exótica, ela achava […] dava ‘uma sensação de horror secreto e intriga’ (Geniesse, 2001:252)”. O Foreign Office apreciou bastante seu serviço e quando durante a guerra o Iêmen permaneceu neutro, o crédito foi para a corajosa excursão de Stark.

No final de junho de 1940, Stark foi chamada para uma conferência no Cairo com Ministro da Informação. Ela fez sugestões que pareceram interessantes ao Ministério e quando consideraram a necessidade de propaganda mais agressiva, ela foi encarregada de executar um de seus planos, um esquema para criar uma sociedade secreta que se chamaria Ikwan al-Hurriyah, ou Irmandade da Liberdade. Stark pretendia criar uma rede sempre em expansão, uma irmandade árabe embalada pela benevolente administração britânica que abarcasse todos os grupos religiosos e promovesse esperanças para um sistema em linhas seculares democráticas no pós-guerra. Stark supervisionou grupos de discussão por todo o Cairo e logo a ideia se tornou um sucesso; então viajou com o objetivo de espalhar a rede por outras cidades do Oriente Médio. Freya e suas ajudantes começaram o trabalho com doze membros e parecem ter chegado a casa dos milhares.

A visão de Freya a respeito do mundo árabe, “por mais admirável que possa parecer, permaneceu colorida por seu amor ao Império Britânico e seus valores. Embora trabalhasse altruisticamente durante os quatro anos de guerra, seus esforços almejavam acima de tudo ganhar intelectuais para a causa britânica, em regiões já minadas pelo fermento anticolonial (Lapierre,2007:169)”.

ÚLTIMAS DÉCADAS

Stark continuou viajando depois da guerra, fez até uma turnê pela América do Norte para proferir conferências. Uma romântica o mais das vezes desiludida, ela se casou aos cinquenta e quatro anos, depois de inúmeras paixões, com um amigo que conhecia bem, ou nem tanto, pois o casamento foi um breve e infeliz engano. Freya prosseguiu em suas viagens e na escritura de novos livros; visitou inúmeras vezes o Oriente Médio, a Índia Ásia Central e Norte da África. Aos oitenta anos escreveu um livro sobre sua viagem ao Afganistão, The Minaret of Kjan; aos oitenta e dois foi titulada oficialmente Dame. Participou de vários programas de televisão para a BBC e outros, e aos oitenta e oito anos foi filmada para a tv andando de mula próxima ao Himalaia, via Langtang até a fronteira do Tibet. Ao fazer noventa e um anos a cidade de Asolo prestou-lhe uma homenagem, ela sorria do palanque, mas se seu corpo resistira a idade, o mesmo não acontecer com sua mente e, como ela dizia, haviam pendurado uma palavra cumprida em seu pescoço, arteriosclerose. Freya Stark disse a uma amiga: “Esperar pela morte, minha querida, é como estar em um trem a vapor fora de moda, no preparo para uma jornada. Você abaixa a janela puxando uma tira de couro e seus amigos estão na plataforma acenando adeus. E então o maldito trem não se move (apud Geniesse, 2001:361)”. Afinal, em um belo dia de primavera, o trem partiu.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CORBIN, Henry. Histoire de la philosophie islamique. Paris:Gallimard, 1986.

GENIESSE, Jane F. Passionate Nomad. New York: Modern Library, 2001.

_________________ . “Introduction” in Stark, F. The valleys of the Assassins. 2011.

LAPIERRE, A. e MOUCHARD, C. Women travelers -1850-1950. Flammarion, 2007.

NIETZSCHE, F. A genealogia da moral. Lisboa: Guimarães & C.a, 1976.

POLO, Marco. Travels. London: Penguin, 1958.

SAID, Edward W. Orientalismo – o Oriente como invenção do Ocidente.
São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

SPURR, David. The rhetoric of Empire. USA: Duke University Press, 1993.

STARK, Freya. Baghdad Sketches, journeys through Iraq. New York: Tauris, 2011.

____________. The Valleys of the Assassins and Other Persian Travels. New York: Modern Library, 2011.

____________. The Minaret of Kjam, an excursion in Afghanistan. New York: Tauris, 2010.

Nota: texto publicado em Labrys 20 (www.labrys.net).

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