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Atwood: a vida antes do homem
Norma Telles
Margaret Atwood
Margaret Atwood, uma canadense de 46 anos, é uma das escritoras mais inteligentes e talentosas dentre os autores que se propuseram decifrar a vida neste final de século XX. É autora de vasta obra, 24 livros, entre poesia, critica, ensaios e romances. Todos eles provocaram polêmicas, tiveram detratores e defensores e vieram para permanecer. A característica principal de Atwood é ser alternadamente satírica e lírica, combinando como ninguém perspicácia e humor.
Embora variada, sua obra mostra – desde o primeiro livro, The Edible Woman, de 1969, até o último, The Handmaids Tale, de 1986, passando pelo extraordinário Madame Oráculo, o único já traduzido no Brasil – uma preocupação constante. Diz respeito à não-determinação das criaturas, à possibilidade de elas se arranjarem de novas maneiras para se apresentarem ao mundo. A autora é, por excelência, uma desconstrutora da identidade feminina, sempre alerta para a maneira de tecer e desenredar a si mesma, usando o material que a cultura coloca à disposição.
Para Atwood, o fato de sermos criaturas maleáveis não é, em si, um pro-blema. “O problema”, afirmou em entrevista recente, “é a pressão para se acreditar que o modo de comportamento requerido é a essência, é o que se é. A isto temos de resistir”. A Vida Antes do Homem (leia trecho nesta página) é um livro que se inicia com data marcada, 29 de outubro de 1976, e termina em 18 de agosto de 1978. As datas não significam nada, a não ser um recorte na vida de três personagens, em torno das quais é tecida a trama de encontros, desencontros, decisões e indecisões que formam a história. A partir destes três pontos, que se cruzam e se afetam mutuamente, descortinamos o cenário complicado, múltiplo em seus conflitos, do mundo contemporâneo.
No primeiro parágrafo surge a intrigante Elizabeth, que não sabe como deveria viver, nem como as pessoas deveriam viver, só sabe como vive. Está deprimida. O amante acaba de suicidar-se. Ela tenta prosseguir com a rotina do emprego, da família. Nate, o marido, quer ajudá-la, mas apaixona-se por Lesjo (pronuncia-se “Lashia”, adverte a autora). Esta, até então, vivia pacatamente com William e vagava com prazer, em fantasia, pela pré-história. Está ciente que esta não é a idéia que as pessoas fazem de uma fantasia repousante. Mas para ela é a única. “Os homens substituíram os dinossauros, é verdade, tanto em sua cabeça como no tempo geológico”, reconhece, “mas pensar sobre os homens se tornou muito pouco compensador”.
A história se desenrola numa cidade mediana, com pessoas da classe média, e enfoca as personagens já na metade de suas vidas. Personagens como nós, talvez, num mundo que conhecemos. Não há grandes amores, grandes paixões. E uma história sobre a impossibilidade de entendimento entre as pessoas – que, no entanto, estão sempre tentando equilíbrios precários. É um romance notável, muito bem-construído. Alia a linguagem enxuta e forte, inventiva, à irônica frieza que une os vários segmentos. Uma leitura obrigatória.
“Sentiram o cheiro da fumaça e quebraram a porta e a retiraram, mas ela já tinha queimaduras de terceiro grau na metade do corpo. Viveu durante uma semana no hospital, deitada sobre colchões ensopados com remédios e células brancas, as , as inúteis defesas do corpo, escorrendo para os lençóis. Quem sabe o que estava recordando, se ela sequer sabia quem era? Não me vira durante dez anos, mas ela devia ter alguma obscura lembrança de que um dia teve filhas. Deixou-me segurar sua mão, a esquerda, que não estava queimada, e eu pensei: ela parece a lua, a meia-lua. Um lado ainda brilhante.”