A
Aventuras de uma parisiense malcomportada
Norma Telles
“Adventure, is my only reason for living”.
“Soyez à vous-même votre lumière”.
Alexandra David-Neel
Era uma manhã de primavera, em 1898, quando uma jovem de quinze anos que tomara um trem na Suíça, para espanto de todas as pessoas sentadas no mesmo compartimento em que se encontrava, desceu para atravessar a pé o passo de Santo Gotardo e caminhar intrépida e solitária pelos Alpes em direção aos lagos italianos; levava consigo apenas um impermeável e segurava, junto ao corpo, um livro, As máximas de Epicteto.
Epicteto, um ex-escravo na Roma do século I, se tornou um filósofo estoico influente e destacado e definiu o ser humano como o ser confiado ao cuidado de si por ter-lhe sido concedida a razão. Privilégio-dever, dom-obrigação, é a razão que pode lhe assegurar a liberdade, razão entendida aqui no sentido cósmico. O princípio vale então para qualquer pessoa, em qualquer época. Deve-se aprender a viver a própria vida; deve-se considerar o próprio de cada indivíduo e a questão fundamental é tomar conhecimento do que se é internamente.
Cuidar de si implica todo um conjunto de ocupações e exercícios. Na autoeducação proposta pelo filósofo há íntima ligação entre males físicos e males da alma, e vice-versa, uma aproximação entre corpo e moral. Esta arte do conhecimento de si desenvolveu receitas, dietas, exercícios, assim como considerava fundamental falar e escrever, pois através de conversas e escritos nos quais o trabalho sobre si mesmo era narrado, pode-se perceber melhor os percursos de cada qual e manter a comunicação com os outros. O ato de escrever era, portanto, uma estratégia prática na constituição do eu.
Foucault que estudou o cuidado de si na Antiguidade clássica, nota que as anotações sobre o si mesmo eram bem diversas da confissão preconizada pelo ethos cristão. Pela escrita se firmava também a “animi medicina”, ou medicina para a alma. A pessoa genuinamente interessada na saúde da alma, deveria retirar-se em si mesma, constantemente, não para se expor, mas para recordar regras de ação e considerar como se conduzir. As notas escritas para o cuidado de si deveriam ser simples e claras para que o estilo refletisse a orientação ética.
Foucault lembra ainda, em seu estudo, que a cultura de si, uma arte da existência sob diferentes formas, era fundada na necessidade de tomar conta de si mesmo e permanecer atento às sutilezas da vida, às experiências que através dessa prática se intensificam; a escrita reforça e reativa a leitura e ambas são motivos de meditação em um exercício quase físico de assimilação.
Para esses exercícios surgiram na época clássica cadernos de notas denominados hypomnémata, quer dizer, suportes de lembranças, que unificavam fragmentos heterogêneos através de sua subjetivação no exercício de escrita pessoal (Foucualt:2004:433). A jovem que na primavera de 1898 desceu do trem para caminhar até os lagos da Suíça italiana, não só lia o filósofo estóico e o destacava como modelo, mas fazia também anotações em um suporte adequado, em um moleskino preto.
Noto uma curiosidade: o livro que a jovem carregava parece ter presença assídua em bibliotecas do final do XIX, e assinalo que ao acaso, encontrei esse mesmo livrinho como marcante na vida de outras duas escritoras, o que perfaz três histórias de moças, no século XIX, que buscaram identidade própria influenciadas por essa leitura. O primeiro encontro com as Máximas foi através de um livro da escritora brasileira Maria Benedita Bormann (1857-1895) que faz sua personagem-heroína, em de um romance de formação publicado em 1890, ter uma epifania, um profundo discernimento sobre si mesma e se transformar em escritora após a leitura do filósofo estoico.
Em um segundo encontro com o livrinho ele era o preferido de Isabelle Eberhardt (1877.-1904), quando jovem. De origem russa, moradora em Genebra, ela adotou princípios dessa leitura, como assinalou em seu diário, e se sentiu justificada a buscar por si mesma e ter uma vida própria que encontrou entre cavalgadas pelo deserto do Saara e o oficio de escritora. A terceira moça que tomou os estoicos como mestres reverenciados, como anotou, em sua juventude foi uma parisiense que morava em Bruxelas e que saltou do trem para caminhar pelas montanhas. Mulher feita escreveu, “amo somente minha tenda, meu cavalo, e o deserto”, por deserto entendia também planaltos e cordilheiras ermos e silenciosos. Ao que Eberhardt, se a tivesse conhecido, teria respondido: “Ah sim, eu amo esse país de areia e pedra, esse país […] de planuras de sal vastas e traiçoeiras”, como podemos ler em seu diário. Em torno do estoico Epicteto, em três pontos da Terra, três moças que se sentiam sufocadas pela sociedade, mais ou menos na mesma época, encontraram sugestões para buscarem outra vida, outros eus, outras éticas. Foucault, com seus estudos, desvendou e apontou, quase um século depois, a importância e as nuances daquela filosofia, não só para os antigos como também para nós, modernos.
A imagem da mocinha caminhando pelas montanhas com poucos pertences, um livro junto ao corpo; com alegria e determinação, é uma imagem definidora, concentra elementos que a distinguem e que se repetem com variações durante toda a vida da exploradora, aventureira e escritora Alexandra David-Neel.
A ARTE DA FUGA E O CANTO DE MANON
O título da obra prima de Bach e a ópera de Massenet assinalam marcos nos anos de formação dessa moça que se dizia ‘selvagem’, antes de suas longas jornadas pela Asia. Fuga, em música, é uma composição na qual um único tema persegue-se a si mesmo, em multiplas variações, com diversas vozes dialogando; uma forma musical rica em simetrias, inversões, ritimos e tempos. Um tema, a fuga de seu meio ou de amarras e a busca de liberdade de escolha será perseguido sempre por ela, em diferentes ritmos e tempos, desde a época em que era Mlle David.
Nasceu em Paris, em outubro de 1868, a menina Eugenie Marie Alexandrine David, de mãe belga – que desejava um filho homem e por isso nunca gostou da filha – e de pai francês que quando a menina estava com seis anos precisou se exilar e, como seu amigo Victor Hugo, foi para Bruxelas. A mulher em que se tornou a menina, Alexandra, morreu tranquila depois de longa e proveitosa vida em setembro de 1969, na sua casa na Provence; morreu cercada pela fama e pelo prestígio adquiridos durante suas peregrinações pelos caminhos do mundo em aventuras que narrou em muitos livros aos quais se somam outros de traduções de antigas escrituras budistas e de contos tibetanos.
O impulso para embrenhar-se por lugares desconhecidos se manifestou nela muito cedo, já aos dois anos quando soltou a mão que a segurava e embrenhou-se por entre as árvores de um parque; curta aventura, pois logo foi encontrada. Aos cinco anos a fuga foi no bosque de Vincennes, em Paris,do mesmo modo: soltou a mão que a segurava e embrenhou-se por u m bosque. Só foi achada pelos gendarmes no final da tarde. Essas lembranças da infância enfeitam a mesma imagem definidora acima descrita, dão-lhe raízes mais profundas. “Sonhava com a estrada”, escreveu mais tarde. Buscava sentir-se livre, ao mesmo tempo em que talvez fugisse de uma casa assombrada pelo desamor entre os pais e entre ela e sua mãe.
Um dia, em 1883, mais uma vez sentiu a “sede de partir” e percorreu a pé a costa belga, passou pela Holanda, embarcou para a Inglaterra, só retornando depois de esvaziada a bolsa de mocinha onde levava o dinheiro ganho como recompensa pelas boas notas na escola. Na mesma época, sua aventura rumo aos lagos italianos, com a qual iniciamos esse texto, acabou do mesmo modo, apelando à família para que fosse buscá-la, estava sem dinheiro.
Alexandrine foi educada em um internado católico, e formava com outras quatro coleguinhas um grupo protestante dispensado de frequentar os cultos, o que despertou sua curiosidade a respeito das várias religiões, como anotou em seu caderno aos doze anos. Nessa época ela também lia, entusiasmada, os livros de Jules Verne, nutrindo um sonho que acalentou desde os sete: percorrer o vasto mundo. O término dos estudos no convento coincidiu com o início dos problemas financeiros da família, o que não a preocupou muito, pois pode continuar usufruindo outro capital paterno, a companhia de seus amigos interessantes, especialmente de Élisée Reclus, aclamado escritor e geógrafo da época, anarquista, amante da liberdade e de ideias republicanas.
Reclus, cortejado por seus contemporâneos era amigo de Tolstoi e do gênero humano em geral; ele precisara deixar a França depois de 1851 e viajara muito pelas Américas. Ao retornar à Paris, fora aprisionado em 1871 e banido. Acabou por se fixar na Bélgica onde reencontrou seu amigo e companheiro de trincheiras da Comuna, Louis David, pai de Alexandra. Outros traços os aproximam, os dois eram protestantes e praticavam um socialismo idealista. Na casa de Reclus, além dos irmãos escritores, se reuniam anarquistas, livre pensadores, idealistas de toda Europa, e por ali passavam os exilados, os proscritos, mercadores de sonhos, poetas e pensadores.
Alexandra que aos dezoito queria mudar o mundo, se descobriu anarquista, tendência que a acompanhou para sempre, e, inspirada como assinala em seus cadernos, pelo Manual de Epicteto decidiu, dois anos depois, escrever um livro, juntando as ideias estoicas às novas que então se lhe eram expostas. Fez um ensaio, “uma exposição de reflexões”, um texto que já centenária continuava a pensar como sendo seu ‘testamento intelectual’. Ela só publicou esse livro dez anos após escrevê-lo com prefácio de Reclus. Nele defende os “condenados da terra” o que a leva a condenar o cristianismo, as igrejas, as religiões, as sociedades e os exércitos que impõem sofrimentos inúteis às pessoas (Chalon:1985).
Aos vinte anos ela sente necessidade de aperfeiçoar seu inglês, língua dos viajantes ao Extremo Oriente, que sempre a atraíra, e decide ir para Londres. A família concorda com sua ida, sabiam ser inútil contrapor-se. É bom lembrar que no final do século XIX as moças permaneciam fechadas no círculo familiar do qual saiam para uma viagem de núpcias, transição para a mesma posição que passariam a ocupar em seguida na casa do esposo. Moças saiam sempre acompanhadas e viajar sozinha então, era impensável, equivalia a uma desonra, uma morte social. A mãe de Alexandra, por causa de suas andanças anteriores pela Europa, não pensava mais em um bom casamento para ela, considerava-a perdida, situação esta que cabia como uma luva nos planos daquela filha rebelde.
Ao sair de Bruxelas Alexandra, mesmo sem o saber, deixava para sempre a cidade onde crescera; para lá só voltaria para breves estadias. Em Londres ela entrou em contato com os grandes textos indianos, desfrutou da biblioteca da Sociedade Teosófica, e resolveu aprender sânscrito para ler diretamente as antigas escrituras. Se Bruxelas, na época, era refugio para os exilados da comuna, para niilistas moscovitas e tais, Londres era refúgio para grupos esotéricos dos mais variados matizes, da Sociedade Teosófica passando pelos grandes Gnósticos chegando aos Sacerdotes de Isis e outros tantos. Não era o local para se estudar línguas Orientais, então Alexandra foi para Paris.
Nessa cidade estuou no Collége de France com professores renomados como Sylvein Lévi, que viajara extensamente pelo Oriente e de quem permanecerá amiga até a morte dele, e Edouard Foucaux, de uma geração anterior, primeiro na França a se dedicar aos estudos tibetanos. Ela aprendeu sânscrito e tibetano; para o chinês seguiu o curso do sinólogo H.de Saint-Denis e depois de seu sucessor. Alexandra chegou a ler bem nessa língua, porém nunca conseguiu fluência verbal e em suas viagens à China necessitava os préstimos de um interprete. E, mais fascinante ainda, frequentou o Museu Guimet que dizia ser “um templo”. Ela foi sempre uma autodidata, e na biblioteca do Museu, contemplando uma linda estátua de Buda colocada na entrada, lia durante horas e acabou por encontrar sua vocação, adotou o budismo como caminho em uma época em que ninguém o praticava na Europa.
O budismo então era conhecido por orientalistas, acadêmicos ou pelos grupos esotéricos, “teósofos, ou ocultistas, estranha mistura incoerente de ideias emprestadas de todos os lados” escreveu Alexandra. Nenhuma dessas vertentes lhe pareceu adequada, ela pensava o budismo como filosofia, entendia que todo o ensinamento de Buda se resumia em: “saber”, como escreveu desde 1895; e em outro texto, publicado na Revue de sociologie et d’ethographie de 1901, continua: “Sidarta é um filósofo materialista no sentido mais elevado da palavra. Ele não adora nada, não invoca nenhum ser celeste. Ele não reza, ele medita; não é um devoto suplicante, é um pensador (apud Désiré-Marchan:2000:61)”. Epicteto oferecera conselhos que facilitaram ver o budismo como sistema de superação da ignorância, autogoverno e caminho do despertar, a mútua relação corpo-gestos-ética-alma.
Alexandra então começou a se corresponder com budistas no Ceilão e na Índia e quando em 1891 recebeu uma pequena herança de sua madrinha, partiu para aquelas regiões onde ficou durante aproximadamente dezoito meses, mais uma vez até o dinheiro acabar. Voltou para Paris e tentou ganhar a vida como jornalista, sempre pensando em retornar ao Oriente. Mas não era bem remunerada, então se voltou para outro lado seu que cultivara desde menina, a música. Era dotada para o piano e possuía bela voz de soprano que trabalhara ao frequentar o conservatório de Bruxelas, depois o de Paris.
O compositor Jules Massenet estimava muito a jovem cantora, trocaram cartas e ele lhe confiou o papel de Manon em sua nova ópera, recomendo-a para o elenco do Teatro de Comédia. Porém, as condições oferecidas foram irrisórias, ela não aceitou e então conseguiu colocação como primeira cantora na Opera de Hanói, e na de Haiphong, na Indochina; fez grande sucesso como a Manon e com vários outros papeis. Durante 1899 e 1900 Alexandra Myrial, seu nome de artista, excursionou com a Ópera de Atenas – e aproveitou para encontrar anacoretas renomados – e em julho de 1900 chegou a Túnis e se engajou na Ópera municipal.
Em seus Carnets, onde detalha essas estadias, esboça projetos, especialmente o de um livro consagrado à “mulher no amor e casamento” onde desenvolveria o tema da “luta entre os sexos”. E é nesse mesmo caderno que mais à frente menciona ter conhecido Phelippe Neel, um engenheiro de estradas de ferro muito sedutor e galante, homem cultivado e musico amador. Os dois se casam depois de quatro anos e logo a relação fica profundamente estremecida, não se sabe bem por que; eles permanecem casados ainda durante muitos anos; ela, porém, se afasta, retoma suas peregrinações pelo mundo enquanto ele fica em Túnis.
Antes de partir ela publica livros e faz conferências na Europa, com grande sucesso. Em 1911 vem à luz Le Bouddhisme du Buddha et le Modernisme bouddhiste, texto importante até hoje reeditado. Ela afirma não pretender fazer obra erudita como tantas outras, mas sim discorrer sobre a existência de um modernismo budista que tentava se realizar no Extremo Oriente, uma Reforma, que visava um imenso número de pessoas em extensos territórios, o que a tornaria muito importante. Enumera os ideais budistas que mencionamos acima e reitera que o único preceito do mestre é: combater a ignorância fonte de todo sofrimento.
Para David-Neel o budismo não é religião, pois não há um ser criador, nem uma doutrina porque não impõe dogmas, mas um caminho que permite vencer os sofrimentos. Essa sua concepção do budismo é próxima das ideias estoicas que cultivou na juventude, as noções de superar a ignorância, saber, caminho próprio tem ressonâncias mútuas. Ela deseja expor um ensinamento racional que esclareça o que o ser humano sente em si, “confirmando o alto valor de seus desejos de emancipação, de separação de sentimentalismos religiosos e repetindo a verdade que o empurra para saber que a Saúde espiritual, moral, social é obra pessoal, que não existem salvadores, em nenhum domínio, que o homem está só diante da dor e que por suas forças, ele deve e pode vencer (apud Brosse:1991:61)”
Enfim, em 9 de agosto de 1911, embarca em um navio japonês que a leva ao Ceilão de onde seguirá para a Índia. Quando parte ela está com quarenta e três anos, Phelippe, o marido, com cinquenta; os dois só irão se reencontrar quatorze anos depois, em 1925. Ele não só lhe forneceu apoio financeiro durante a viagem, que ela inicia com bolsa que ganhou em Paris, como foi seu interlocutor privilegiado, consultor de logística e correspondente fiel, em cartas trocadas durante todos aqueles anos que mostram um diálogo rico que assegurou à viajante uma ancoragem no Ocidente durante suas incansáveis peregrinações.
ERRÂNCIAS
Ao chegar pela segunda vez ao Ceilão é recebida como uma budista proeminente, o que lhe abre portas para um convívio intenso com pessoas eminentes, intelectual ou socialmente. Seguindo o mesmo roteiro de há vinte anos, ela partiu para a Índia, desembarcou mais uma vez, emocionada, em Madurai, onde anotou em seus cadernos: “Após um intervalo de tantos anos, encontro a mesma impressão ainda com maior intensidade. Ah, como descrever essa visão…” ou como descrever o frisson provocado por essa terra!
Nunca se esquecia de seus objetivos e aproveitava todas as ocasiões para aprofundar seus estudos, por isso segue para uns dias em Pondicherry para discutir filosofia com Sri Aurobindo, que então lhe causa grande impressão, embora anos mais tarde essa apreciação ceda lugar a críticas. Lentamente ruma para o norte, chegou a Calcutá onde estudou e frequentou a sociedade. Aceitou então o convite e a honra para conhecer o XIIIº Dalai Lama, raro privilégio; ele demonstrara curiosidade em relação a esta europeia iniciada no budismo. Em seguida, atendendo ao convite do marajá herdeiro do Sikkin, pequeno reino incrustrado entre o Butão, o Tibete e o Nepal, segue para lá.
O herdeiro do trono do Sikkin e Alexandra se tornaram grandes amigos, faziam excursões a cavalo ou em iaque pelas montanhas apesar do frio e do vento. Visitaram também Darjeleeng e indo cada vez mais longe, ela conseguiu entrever o Tibete, e anotou que ficou enfeitiçada, como se estivesse à beira de um mistério. O Tibete era então fechado a todos os estrangeiros, não só a Ocidentais, local de onde poucos voltavam com vida e aonde os ingleses, senhores do poder colonial, impediam qualquer intrusão.
David-Neel a seguir decidiu seguir os passos de Buda, peregrinar pelos lugares marcantes de vida dele antes de fazer uma estadia em Benares para estudar sânscrito e rever um mestre. No ano seguinte, quando retornou ao Sikkin, estava acompanhada de um jovem lama, Aphur Yongden, que tomou a seu serviço e mais tarde adotará como filho, ele que será se futuro companheiro em incríveis jornadas pela Ásia. Ainda no Sikkin seguiu até Lachen, na cordilheira majestosa, convidada, pelo superior de um monastério, para ficar algum tempo junto dele. Acabou passando o inverno no Himalaia, aos pés desse mestre, em uma caverna situada em baixo da dele, a cinco mil metros de altitude. Durante essa estadia ela estudava tibetano e praticava ioga.
Em julho de 1916, findo o inverno, ela abandonou a montanha e acompanhada de Yongden e de um monge atravessou, a cavalo, a fronteira do Tibete. Chegou a uma aldeia monástica, muito diversa das aldeias nas quais residem os naturais do Himalaia. Meio a uma tempestade, em uma
“curva da estrada, onde havia parado […] meus olhos de repente contemplaram uma gloriosa visão. No crepúsculo azulado o enorme mosteiro de Tashihunpo elevava-se à distância, um enorme aglomerado de edifícios brancos com telhados dourados que refletiam os últimos e pálidos raios do sol (TMM:93)”.
Bem acolhida, David-Neel percorre todo o mosteiro e a guisa de agradecimento pela acolhida, oferece chá aos milhares de monges que ali viviam. “Um esplendor bárbaro reinava nos templos, salões e palácios dos dignitários. Nenhuma descrição lhe poderia fazer justiça. O ouro, a prata, as turquesas, o jade eram largamente empregados…[TMM:95]”
Ela não admira o espetáculo que lhe parece infantil e pouco refinado. O dignitário, Tashi Lama, ou Grande Lama, o segundo em importância no Tibete, a recebeu com atenção, ela apreciou a estadia, mas logo ela devia partir. Nesse primeiro contato com o Tibete o que realmente a encantou foi a visão “das calmas solidões” onde acreditava se ocultavassem ascetas sábios. No caminho de volta ao Sikkin visita ainda um grande estabelecimento de impressão de livros religiosos e um eremitério para o qual fora convidada.
Os ingleses sempre a par de tudo não gostam nem um pouco desse passeio, cobram multa de uma aldeia da fronteira, o que deixa a viajante indignada. Em setembro enviam-lhe uma ordem de expulsão, deve deixar definitivamente a região. E lá vai ela, para a Birmania, Malásia até o Japão onde encontra um homem que conta como disfarçado de médico chinês conseguira ir e voltar do Tibete. Ela, saudosa das neves e da solidão das montanhas, tem uma ideia: iria até lá disfarçada em peregrina. Para isso, decide partir seguindo um roteiro básico para viajar pela China, atravessar desertos, estepes, planaltos, cordilheiras e chegar as terras interditas.
DEAMBULAÇÕES RUMO À CIDADE PROIBIDA
No início de 1923 ela está de novo na estrada, agora em direção ao mistério que a atraia e à cidade proibida aonde chegará, três anos depois, após muitas voltas no caminho e incríveis aventuras. Primeiro passou pela Coreia e foi para as montanhas Diamante que abrigam eremitérios e monastérios zen; os coreanos lhe pareceram simples e cordiais. Fizeram uma estadia no monastério da Sabedoria suprema, em Panya-na, onde com alguns poucos monges em local isolado no meio da floresta levaram uma vida simples e calma. No final de setembro voltaram para Seul e retomara a jornada.
Em outubro estavam ao pé da Grande Muralha da China e chegaram a Pequim no final daquele mês de 1917. Prontamente Alexandra se põe a planejar a continuação da viagem. Resolve ir pela Mongólia, lugar mais acolhedor para estrangeiros do que a China, pensa, e onde poderia, asseguram-lhe, prosseguir seus estudos do lamaísmo. Os chineses conheciam poucos Ocidentais, alguns embaixadores, missionários e comerciantes, de modo que ficavam surpresos diante daquela “dama lama” francesa e doo lama seu acompanhante. Logo, com ajuda do Ministro francês, conseguiu arrumar tudo o que precisava para seguir em frente.
Em 1918 chegaram, tendo-se juntado a uma caravana para maior proteção, ao monastério de Kum-Bum na província tibetana de Amdo, de administração chinesa: “Durante anos havia sonhado com a longínqua Kum-Bum, sem atrever-me a ter esperanças de chegar até lá (TMM:100)”. Os incidentes se sucederam e a viagem, conta, foi pitoresca porque além de acontecimentos inesperados, os companheiros de jornada ofereciam matéria de assombro. “Entrei em contato com a guerra civil e o roubo. Esforcei-me para prestar auxílio a homens feridos deixados ao abandono. Certa manhã, defrontei-me com um feixe de cabeças – de bandidos recentemente degolados – pendurados à porta de nossa hospedaria (TMM:101)”.
Havia guerra por toda parte, cidades sitiadas, tempestades; escaparam da zona de guerra, e seis meses depois da partida de Pequim se instalaram no mosteiro de Kum Bum, tendo percorrido dois mil e quinhentos quilômetros. A essa estadia David-Neel dedica todo um capítulo de um de seus livros, no qual narra detalhes da vida cotidiana no famoso monastério, que tinha uma Arvore sagrada como centro. A população era das mais variadas, tibetanos, mongóis, chineses, representantes de tribos autóctones; a situação política era ainda mais complexa, os vários grupos se hostilizavam. Mesmo assim, ela encontrou paz nesse complexo mosteiro cuja construção principal é datada dos séculos XIII a XV. Em carta à Phillipe, em julho de 1918, conta:
“O silêncio que reina entre os templos é uma delicia depois de tanto tempo passado meio ao barulho. Há em Kum-Bum, repartido entre diferentes templos, uma população estimada em três mil e oitocentos lamas, mas um silêncio absoluto envolve todos esses edifícios dispostos em andares sobre o flanco de duas montanhas que fecham um vale estreito (apud Chalon:313)”.
David-Neel estuda, traduz, faz meditação. Quando recebeu notícia do armistício encerrando a Primeira Guerra, escreveu para jornais franceses nos quais fora articulista e retoma sua anterior contribuição para o Mercure de France, o Soir e outras gazetas. Dezoito meses se passaram, era hora de seguir em frente. Em 1921 retomaram a jornada até Lassa. Desta vez sem roteiro detalhado, sabendo apenas que era preciso evitar os caminhos muito frequentados, era preciso não ser percebida como europeia, e mais, passar despercebida, único modo, Alexandra tinha certeza, de conseguir realizar seu ‘Grande Projeto’. Em um primeiro momento pensa em contornar o nordeste do Tibete e seguir a rota das caravanas que conduziam à Lassa, o que demoraria uns três meses atravessando extensas regiões despovoadas que não lhe eram de todo desconhecidas.
Mas como não podiam ser reconhecidos como estrangeiros a Lâmpada da Sabedoria, como a apelidaram os indianos e o lama, Oceano da Compaixão, seguiram por outro percurso que os fez vagarem durante três anos pelo “Grande Tibete”, onde se encontravam e lutavam chineses e tibetanos. Essa região os levou à província de Yunnan, povoada por grupos tibetanos que não reconheciam a autoridade de Lassa nem a de Pequim. Uma região que mais tarde David-Neel dirá ser a mais interessante do Tibete. Raros europeus haviam colocado os pés naquelas terras, um ou outro jesuíta há alguns séculos, sucedidos por capuchinos. Um holandês leigo no XVIII penetrara até Lassa e no começo do XIX, dois lazaristas franceses haviam entrado na cidade proibida. E só.
Em junho um funcionário chinês a reconhece como europeia, é presa e a muito custo consegue depois de certo tempo prosseguir viagem; adoece com disenteria, reumatismo e então decide procurar um hospital; chegaram a Jackyendo, centro de comércio importante, descreveu ela, e posto militar chinês situado na rota das caravanas para Lassa. O inverno foi muito rigoroso e os dois viajantes acabaram ficando sete meses na região. Exploraram os arredores e Alexandra se encontrou com um general britânico, sir Georges Pereira, um globe trotter e geógrafo encarregado de uma missão secreta junto ao Dalai Lama. Ele colocou a disposição de David-Neel uma coleção de mapas e notas relativas ao Tibete e também a ajudou a traçar o percurso até Lassa; mais ainda ele lhe apontou uma rota alternativa por todos desconhecida e bem mais difícil. E ela acaba escolhendo essa última alternativa.
Percorreram o Gobi entre 1921-1923, passando por áreas de arbustos e pelo deserto de neve; afrontaram frio, calor, fome e sede; diarreias e dores de garganta e sempre problemas financeiros. Alexandra escreveu a Philippe contando como as condições de vida no interior da China eram inimagináveis, mais ainda nas fronteiras, confusão e caos por toda parte, falta de autoridades, conflitos e lutas; “um lugar para quem gosta de aventuras”. Ela aprende a mendigar, a dormir toda vestida sobre plataformas como logo mais aprenderá a dormir no chão rugoso, os poucos pertences que levavam prensados entre ela e Yongden.
No final de 1923 encontram a ultima aldeia chinesa do Yunnan e, refeitos, David-Neel e seu acompanhante se põe a caminho; para ela é quinta tentativa de conhecer Lassa. Ela está então com cinquenta e cinco anos, Yongden é jovem está na casa dos vinte. Alexandra queimada pelo sol acentuava a cor da pele com fuligem, como em geral fazem os peregrinos, e pintava os cabelos com tinta da China para se disfarçar. Viajavam à noite para não serem vistos. Uma, duas, várias vezes erraram a direção e precisaram voltar sob seus passos; o tempo às vezes “está desagradável. Um vento frio entrava por nossas vestes e nuvens baixas indicavam que iria nevar (PL:68)”.
Algumas vezes viajam com outros peregrinos, ganham um pouco de farinha ou chá. O caminho que seguiam beirava um rio majestoso passando através de gargantas profundas e amplos vales, uma paisagem “grandiosa e encantadora”. A travessia para o Tibete ela fez pelas montanhas do Kha Karpo, um cenário de beleza extraordinária. Oito meses foi o tempo desse percurso até a cidade proibida, mas Alexandra sentia alegria nessa vida de peregrina apesar dos inúmeros perigos, dos leopardos, lobos, humanos e fantasmas que cruzam pelo caminho, dormindo em cavernas quando as encontram, comendo e bebendo muito pouco, alguns dias nada.
Certa feita era preciso cruzar um rio pendurados em um gancho atado a uma corda. Junto a Alexandra vai uma moça, que gira e não consegue se aquietar. A engenhoca encrenca a meio caminho; o incidente em si não apresentava perigo, mas a jovem estava apavorada e se agarrava nela o que a fez lembrar um conto de Edgar Alan Poe! O que foi mais difícil para ela, “algumas vezes penoso em demasia na existência que levava, era o papel que precisava constantemente desempenhar para não se trair (PL:173)”. No caminho observava – não podia fazer anotações para não se denunciar e depois descreveu em seus livros com enorme precisão, fenômenos extraordinários, ou ordinários, as vezes fogo noturno que não sabia o que era, tipos estranhos como os homens que corriam em transe a grande velocidade e sem se cansarem, feiticeiros jogando malefícios para todos os lados.
A paisagem muda constantemente, eles atravessam desfiladeiros cobertos de neve que lhes chega quase até a cintura, o que não a incomoda porque “era tão poderosa para ela a sedução da noite nevada, no coração das montanhas não violadas (PL:253)”, que o bem estar triunfava sobre a fadiga física e as preocupações e ela, sentada imóvel, saboreava as delícias do “isolamento na calma perfeita”. Em um desses momentos, quando dá por si, enxerga Yongden apoiado em uma pedra, não andava, levara um tombo e torcera o tornozelo. Ela consegue carregá-lo, encontrar uma gruta para acomodá-lo antes de partir em busca de ajuda. Encontrou somente campos desertos, a neve não parava de cair, a noite estava escura, ela ficou meio desorientada. O lama, porém, previdente, havia acendido um fogo para mostrar aonde se encontrava, assim ela voltou para sua companhia. Eles estavam sem provisões, mas conseguiram sobreviver com um pouco de farinha e água da neve até a perna do lama melhorar.
Por fim a última etapa rumo a Lassa, com tempo bom, frio e seco, o céu luminoso. Caminharam rapidamente e a entrada na cidade proibida pareceu a David-Neel protegida por uma espécie de prodígio. De repente a atmosfera calma se agitou e em minutos se formou uma tempestade levantando nuvens de poeira, o que para os dois foi muito bom porque ninguém poderia reconhecê-los! ”Uma gigantesca cortina amarela, feita de areia suspensa, se estendia diante do Potala, cegando seus hóspedes, encobrindo Lassa e os caminhos que a ela conduziam (PL:347)”. Ela interpreta o fenômeno como símbolo de segurança e os eventos que se seguiram justificaram essa interpretação.
Durante dois meses percorrem a cidade, “a Roma tibetana”, seus templos e vielas sem serem perturbados, recompondo as forças porque restava ainda o longo caminho de volta. Não precisam mais se passar por mendigos então David-Neel retira algumas moedas de prata que carregava em uma cintura a volta do corpo para pagar um fotógrafo que registrasse os dois no local. Na votla, em direção à Índia, é cumprida sem grandes perfurações. Ao encontrarem o primeiro europeu, Alexandra, ainda disfarçada de tibetana, quase o mata de susto ao falar com ele em inglês. Abrigam-se em uma hospedagem e, antes de dormir, Alexandra poder, gritar para si o que os tibetanos gritam quando realizam algo desejado: “Lha gyalo! Os deuses triunfaram! (PL:352).”
A Lâmpada da Sabedoria e seu filho adotivo, o Oceano de Compaixão, deixam o “País das Neves” como os locais denominavam o Tibete, e se dirigem ao Sikkin convidados agora pelo residente inglês. As autoridades coloniais que a haviam expulsado anos atrás a recebem como heroína. Quando em janeiro de 1925 chega a Bombaim [Mumbai] é recebida como celebridade; os grandes jornais de Paris, depois os das províncias, fazem ecos aos da Índia. Do mundo inteiro chegam convites e solicitações de entrevistas. Em abril embarca no Ceilão para a Europa. Ao chegar à França é saudada como heroína nacional. Recebe inúmeras medalhas de várias sociedades de estudos, até a da Legião de Honra. As palestras se sucedem, no Collége de France, na Sociedade Geográfica, no museu Guimet, e tantas outras em tantos outros locais.
David-Neel não enriqueceu, mas seus direitos autorais lhe permitiam viver sem as antigas incertezas. Ela comprou uma propriedade em Digne, nos Alpes da Alta Provence, local que hoje é um centro cultural que leva seu nome e reúne seus manuscritos e objetos e que mantém um sitio onde exibe muitas de suas fotografias. Quando comprou a casa estava arrumando para si um refugio onde pudesse escrever e ter paz.
Anos depois, às vésperas da Segunda Guerra, o apelo ao Oriente tomou-a de novo e partiu mais uma vez, com Yongden para o que seria sua última viagem, estava com setenta anos. Foi para a China. Essa excursão foi um desastre do começo ao fim, tudo dá errado, ela ficou presa entre conflitos e guerras, tornou-se ‘uma fugitiva’, escreveu, como todos os chineses, e só conseguiu voltar passados oito anos. Recolheu-se em sua casa e continuou a escrever até ali morrer aos 101 anos. Suas cinzas foram levadas a Benares, juntamente com as de seu filho adotivo e companheiro de viagens, falecido muitos anos antes, e dispersadas no Ganges.
O livro que narra a viagem ao País das Neves saiu em 1927, com o título Voyage d’une Parisienne a Lhasa [Viagem de uma parisiense à Lassa], com subtítulo: a pé e mendigando da China à India através do Tibete. A edição americana e a francesa foram lançadas simultaneamente e o sucesso foi imenso, nesse mesmo ano foram feitas nove edições. Até hoje o livro é reeditado em várias línguas, inclusive em português. Na introdução ela explica que “esse giro até Lassa disfarçada de peregrina mendicante foi apenas um episódio de longas viagens que me retiveram no Oriente durante quatorze anos (PL:9)”, e o motivo que a levou a empreender essa volta foi tanto vingar seus insucessos anteriores nessa empreitada quanto, e principalmente, “chamar a atenção sobre o fenômeno, singular de nossa época, dos territórios que se tornam interditos (PL:20 grifo da autora)”, e esse não era somente o caso de Lassa, comenta, mas também de uma imensa barreira que cortava as comunicações na Ásia. Pensa que se discutisse a questão dos territórios proibidos sem ter ido até Lassa, poderiam pensar que protestava porque não conseguira entrar, mas tendo completado a jornada se sentia à vontade para expor a questão e atacar as interdições.
A fortuna crítica de seus livros foi diversa, alguns os trataram como livros científicos, ou quase visto todos saberem que as mulheres não escrevem ciência, outros os têm como livros sobre o fantástico. Em geral não se acredita muito no que relatam as viajantes, costumam dizer que elas “exageram” ou o que contam é “falso”. Nenhuma dessas críticas é despojada de preconceitos, são técnicas através das quais os textos das viajantes são invalidados ou questionados. Mills acredita que como conhecia essa atmosfera de suspeita, David-Neel estruturou seus livros de maneiras específicas.
Empregou três elementos: material factual em primeiro plano; uma figura narrativa forte, tanto em força física quanto em conhecimentos e o uso da evidência proporcionada pela fotografia. Há duas vozes narrativas, uma objetiva e a outra mais pessoal, elas dialogam durante o relato, ora é uma voz que fala hora outra, até discordam, o que é interessante e diferenciado. Ela usa o estilo convencional dos relatos de viagem, linguagem simples, nomes locais com notas de rodapé explicativas, assim por diante.
A narradora como figura forte parece a Mills inspirada em livros dos viajantes como Burton, T.E.Lawrence para quem a coragem e resistência física eram atributos essenciais. Mas, penso, porque não acreditar que falava a partir de sua própria experiência? Desde pequena aquela mulher fora corajosa e resistente fisicamente. Parece mesmo ter tido uma preferência por atravessar as cordilheiras do planeta. As ações da viagem descritas exigem coragem mas também argucia.
A crítica segundo a qual a narradora paira acima de todos, trata os tibetanos e asiáticos como tolos, tem algum fundamento na visão própria ao começo do século XX, mas essa crítica generaliza, enquanto David-Neel diferencia crenças e hábitos dos asiáticos ou tibetanos em particular. A caracterização deles como simples não é sempre negativa ou derrogatória. A personagem de Yongden acrescenta status ao texto uma vez que ele é lama. Ele representa o budista verdadeiro enquanto a maioria dos tibetanos é apresentada como seguindo um budismo tinto de crenças Bon, que lhe são anteriores. Ainda penso que essas questões são mais complexas e bem tratadas por David-Neel do que podem parecer à primeira vista.
Interessante Mill notar que a voz narrativa não se enquadra nos moldes do herói masculino porque ela introduz suspense na trama e, ao mesmo tempo, descreve seus medos e angústias. O suspense pode parecer estranho em um livro cujo título conta o fim da estória, mas ele está presente o tempo todo, bem dosado, tornando o leitor um aliado da narradora na busca de seu caminho e saber se os dois caminhantes triunfaram, é algo que depende tanto do leitor quando da narração.
O que não se pode esquecer é o impacto que esses livros tiveram na cultura do Ocidente, eles provocaram um acolhimento e interesse, especialmente pelos tibetanos desconhecidos, nunca antes conseguido, talvez mesmo tentado, por escritos missionários ou de viajantes. Isso, por sua vez, facilitou a acolhida favorável dos textos e dos próprios tibetanos depois dos anos cinquenta quando se exilaram de suas terras. Escritores lhe prestaram tributo, dentre eles os contestatários da cultura norte americana Jack Kerouac e Allan Guinsberg, assim como o filósofo Alan Watts e o escritor cult Lawrence Durrell que foi visita-la em 1964 e declarou à revista Elle:
“a lista de suas viagens é impressionante, justificando por si só o titulo entusiasta de ‘a francesa mais notável de nosso tempo’ que lhe atribui. Foi ela que nos abriu todo o mundo escondido do budismo tibetano em uma época em que nossos conhecimentos nesse domínio eram tão limitados quanto inexatos (apud Cholan:526)”.
David-Neel ao se perguntar o que aprendeu durante tantos anos de retiro responde que é difícil precisar, mas pode dizer que adquiriu algum conhecimento; foi o máximo que disse sobre um assunto sobre o qual sempre se mostrou reticente e discreta. O vivido é incomensurável.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CHALON, Jean. Le lumineux destin d’Alexandra David-Neel. Paris: Librarie Académique Perrin, 1985.
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www.gooblebooks.com Sara Mills, Discourses of difference: an analysis of women’s travel writing and colonialism. Routledge, 2ª ed. 1993.
Nota: texto publicado em Labrys 19, jan 2011 (www.labrys.net).