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B

Belas e Feras

Norma Telles

No princípio era a deusa ladeada por dois felinos. Senhora dos Animais Selvagens (Ilus.1), ela, a dos mil e um nomes, entretinha a conversa entre os vários reinos de sua criação e marcava o ritmo com a cadência de seu andar.

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Ilustração 1:
Senhora dos animais, Çatal-Huyuk, c. 6000 A.C.

Milênios depois, já avançada a história – e lançadas as sementes das fragmentações futuras – por volta de 1583, no Renascimento tardio – a Bela Lavinia Fontana, pintora bolonhesa de renome e muito solicitada, retratou Antonieta Gonsalvus, uma menina, uma Fera (Ilus.2), vestida á maneira suntuosa das cortes de então. É um ser humano recoberto de pelos que exceto pelas mãos lhe cobrem a face e o corpo todo, dando-lhe uma aparência selvagem. A menina, conhecida como Tongina, era filha de uma bela holandesa e de Petrus Gonsaulvus, natural do Tenerife e portador de doença de pele congênita, a hypertrichosis universalis. Foi o primeiro caso registrado dessa doença e, no século XVI, e causou espanto e muitos comentários.

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Ilustração 2:
Lavinia Fontana, Tongina, c. 1583.

A família Gonsalvus foi retratada inúmeras vezes, ilustrou livros sobre monstros e tratados médicos, inclusive o do famoso médico bolonhês Aldrovandir que traz a menina na capa, um monstro em roupagem de gala. Para alguns, Tongina e os seus eram exemplo de maravilha, para muitos outros, um exemplo dos horrores da natureza, criaturas defeituosas. Eles borravam a fronteira entre o reino dos homens e o reino animal. Fronteira bem nítida para o pensamento cristão, fronteira reforçada por Tomás de Aquino ao reafirmar serem os animais sem alma e as feras peludas decididamente diabólicas.

Em outra pintura, o retrato do gabinete de curiosidades do imperador Rodolfo II, em Praga, observa-se a família toda, o pai e os filhos cobertos de pelos e mais a linda holandesa, com quem se casara. Pedro, com um toucado caprichado, é o pai que transmitiu a anomalia aos filhos e ao neto, filho, no devido tempo, da então menina Tongina. Neste quadro, os irmãos seguram uma coruja e estudiosos já destacaram a semelhança entre a corujinha, ave noturna, fera, e a menina. Ambas, a menina e a ave, têm os mesmos olhos sem expressão, redondos, rodeados por penas os do animal e por pêlos os da menina. Neste retrato, a família é banida do mundo humano da mãe e atirada ao mundo das feras os portadores da anomalia do pai.


No entanto, nas lendas e nas mitologias do Ocidente, a linha divisória entre animais e humanos permaneceu bem mais flexível, constantemente cruzada e recruzada. Nas histórias de príncipes sapos ou amantes animais, a possibilidade de convivência entre as ordens de criaturas era mantida vivaz. Nelas as feras são redimidas de sua condição selvagem e trazidas de volta à civilização pelo afeto de um homem ou mulher.

O quadro de Fontana não trata de redenção no sentido exposto acima. No entanto, Tongina é apresentada diferente de outros retratos seus como os descritos acima. A menina, de uns dez anos, tem o rosto peludo redondo, suave, lábios rosados e carnudos, olhos negros. É Bela em sua estranheza. Muito séria, figura central da pintura, parece ter sido acolhida e, compreendida pela pintora (Minguel:2001). Fontana cedeu-lhe a palavra, pois a Fera segura uma carta na qual se apresenta e se localiza no mundo. Nela está escrito:

“Das ilhas Canárias foi levado
Ao senhor Henri II de França
Dom Pietro, o homem selvagem,
De aí, ele se instalou na corte
Do duque de Parma, assim como eu,
Antonietta, e agora estou na mansão da
Senhora dona Isabella Pallavicina Marquesa de Soragna”.

Pedro, o pai fora presenteado ao rei da França, por causa de sua anomalia, uma tal curiosidade! Na corte se educou, tornou-se um cortesão que dominava até o latim. Consta ter sido muito inteligente e recebeu inúmeras mostras de carinho do rei que o incluía no grupo que lhe era mais próximo, lhe arranjou um bom casamento e proventos para que vivesse bem. Com a morte do monarca francês, e por conjunturas políticas, foi com a família para a cidade italiana de Parma. No quadro a indicação da casa da Marquesa Soragna permite aos estudiosos datarem o quadro em torno de 1583, época em que a família deixou Namur, onde eram parte da corte de Margarida de Parma, regente dos Países-Baixos até 1567. Ali eram exibidos aos visitantes como grande curiosidade, tornam-se ‘figuras curiosas’. Quando a regente volta a sede de seu ducado, a família de Pedro retorna também. Depois disso, ainda na mesma cidade, passaram para a casa da marquesa de Soragna. Pedro trabalhou também como administrador em um local próximo o que lhe permitiu amealhar o suficiente para adquirir uma propriedade e retirar-se, com a família, para Capodimonte, onde, dizem, a dignidade que tanto valorizava lhe foi devolvida (Zappeiri:2003).

Pintada por Fontana, Tongina continuou a nos falar através dos séculos. E tanto isto é certo que, em 1946, ao filmar sua poética e inspirada versão de “A Bela e da Fera”, Jean Cocteau tomou aquele retrato como modelo para a caracterização do ator Jean Marais. A versão da estória que se tornou a conhecida até nossos dias, data do século XVIII e parece ser uma adaptação de uma longa estória, de Mme Barbot de Villeneuve, por sua vez tomada de contos tradicionais que tem como tema o marido monstruoso, imortalizado desde o período helenístico, por Apuleio ao relatar a lenda de Eros e Psiquê. No século XVIII, a versão que conhecemos é publicada por uma governanta francesa que escrevia um Magasin des enfants, Jeanne Marie Leprince de Beaumont, e que institui os contos moralizantes e pedagógicos. Ao retomar a estória, Cocteau guarda a linguagem do século XVIII, mas suas metáforas visuais criam atmosfera de beleza estranha e fazem um poema cinematográfico cheio de imagens inesquecíveis e que se tornou modelo para outros tantos cineastas que vieram depois.

Cocteau já nos anos vinte frequentava as vanguardas artísticas; foi importante expoente do Surrealismo e teve grande influência na obra de outros artistas. A palavra surrealismo, parece, foi cunhada pelo poeta Apolinaire ao referir-se a um balé de Cocteau. A década seguinte, os anos trinta do século XX, foram anos de convulsões econômicas, sociais e políticas que provocaram crises e prenunciaram o conflito que pairavam no ar desde o final da Primeira Guerra. No círculo dos Surrealistas, Breton publica seu segundo manifesto lembrando que os espíritos perspicazes já percebiam a aproximação de nova catástrofe mundial. Ao inserir essa linha no Manifesto, ele tenta inscrever o movimento na história de seu tempo buscando responder a crise de civilização.

Preconizava a superação de dicotomias, recusa as classificações do pensamento dualista, e defende a volta à unidade de percepção e da representação para reconciliar interior e exterior, o objetivo e o subjetivo (Moraes:2002:63). Afirma haver um ponto no qual os contrários não são mais irreconciliáveis, este ponto é o desejo. “Ao afirmar a proeminência do corpo do desejo sobre o corpo natural, o surrealismo colocava em cena imagens nas quais os diversos membros e órgãos tornavam-se intercambiáveis, multiplicavam-se ou eram sumariamente suprimidos” (Moraes:2002:69).

O corpo fragmentado ou ausente des-realiza a forma humana, recusa fixá-la de modo estável. Resta o princípio de mutação permanente, de metamorfose constante derivada de Lautreamont. Bachelard lembra que na obra desse autor, uma forma cria outra, de um movimento surge outro, pois é “o excesso do querer-viver que deforma os seres e que determina as metamorfoses” (Bachelard:1995:12). A imaginação como dinamismo criador é a rejeição da tirania da forma fixa que parece se oferecer à percepção. As imagens dinâmicas não só formam, mas sobretudo deformam, transformam, ampliam e aprofundam a chamada realidade. É a imaginação, poder maior da natureza humana, que não só inventa coisas, mas, principalmente, inventa caminhos novos (Bachelard: 1960).

Uma “orientação hegeliana-marxista, uma paixão pela poesia e uma sensibilidade anarquista” colocaram o movimento entre os mais radicais daquele momento ((Rosemont:1998:45). Era anti-europeu, anti-racista, anti-imperialista; criticava o mito do progresso, desconfiava da tecnologia ao mesmo tempo em que propunha esquadrinhar o inconsciente; amava a natureza selvagem e simpatizava com outras culturas. Por tudo isso, foi um movimento atraente para as artistas e para as mulheres. Chadwich que entrevistou várias mulheres que circularam no grupo naqueles anos e depois se dispersaram pelo mundo diz que todas elas falaram positivamente do apoio e encorajamento recebido (Chadwich:1985:11). Os surrealistas propunham também nova abordagem do conhecimento e da natureza, retomando as fronteiras flexíveis entre os reinos, a possibilidade de aproximação de realidades distintas. O estudo de tradições arcanas e a atenção aos sonhos faziam parte deste repertório, pois, como afirma Lima, o surrealismo parte do questionamento do humano e para isso emprega inúmeros meios.

No final dos anos 30, à Paris chegaram duas Belas artistas que desejo lembrar aqui, em suas relações com as Feras. Remedios Varo, nascida na Catalunha, e Leonora Carrington, nascida em Lancanshire, tiveram destinos marcados, desde a infância, por viagens, reais e imaginárias. Nômades por contingências históricas e porque a vida as levou, cruzaram-se em Paris, no circulo dos surrealistas, em torno de Breton, Péret, Ernst, Eluard, entre outros. O grupo lhes ofereceu um local onde a rebelião era vista como virtude e a imaginação era tida com passaporte para uma vida mais liberada. É certo que antes mesmo de ali chegarem, atraídas pelas vanguardas artísticas, já haviam iniciado jornadas em busca de liberdade da família e dos tabus sociais. As duas também já tinham aprendizado artístico e haviam escolhido a arte como expressão e carreira.

Durante a Guerra, com a ocupação nazista da França, as Belas fugiram por experiências e itinerários diferentes e foram para o México. No país que as acolheu, as duas artistas desenvolveram uma amizade profunda e duradoura e compartilharam uma busca estética e espiritual por conhecimento e liberdade de criação. Interessavam-se por arte, ciências, tradições herméticas. O livro A deusa Branca, do poeta Robert Graves tornou-se um dos prediletos das amigas. Eram especialmente atraídas pela alquimia que, no dizer de Bachelard, é a longa história inacabada dos amores entre os humanos e a matéria. As buscas que partilharam, os estudos que empreenderam, as experiências, sérias ou humorísticas, foram expressas em linguagens pictóricas semelhantes e ao mesmo tempo bem diferentes, como diversas foram as circunstancias de suas vidas. Elas se voltaram para suas próprias imagens e realidades como fonte para a arte. Chadwich pensa que as duas se apropriaram da identificação entre mulher e natureza, central na cultura, e a transformaram em poder criativo e força expressiva, buscando desvendar os seres vivos e os inanimados, em suas relações e em suas metamorfoses.

Ao chegar à cidade do México, Carrington era jovem, bela, vivaz, desinibida e possuidora de uma imaginação sem limites. Ao completar oitenta anos, ainda bela e cheia de imaginação, diz que nunca realmente se decidiu a ficar ali, foi ficando, se deixou ficar. Carrington crescera em região de bosques e neblina, ao norte da Inglaterra. Morava em um castelo neogótico com salões escuros cheios de móveis e foi nutrida por antigas estórias celtas contadas pela mãe e pela ama. Desde criança gostava de equitação e dos animais que conhecia no zoológico e, certa feita, já bem crescida, declarou que a idéia de redenção, de tornar animais humanos, era-lhe deprimente. Em seus contos e quadros animais e humanos dialogam, jovens rebeldes são amigas de hienas, cavalos, mulheres-lobo. Ela escolheu a hiena como fera e o cavalo como animal de predileção. Um dos contos de Carrington, de 1938, se intitula “A debutante” e gira em torno da apresentação à sociedade de uma moça que na expressão de Aberth (2004) é uma ‘debutante relutante’. Porém, após ler a estória inúmeras vezes, convenci-me que a debutante é bastante decidida, que sabe bem o que quer. Senão, vejamos:

“Na época em que fui debutante, costumava amiúde ir ao zoológico. Ia com tanta frequência que conhecia melhor os animais do que as moças da minha idade. Era porque queria fugir do mundo que ia diariamente ao zoológico. O animal que melhor cheguei a conhecer foi uma jovem hiena. Ela me conhecia também. Era muito inteligente. Eu lhe ensinei a falar francês e em troca ela me ensinou sua linguagem. Assim, passávamos muitas horas agradáveis”.

A mãe da jovem amiga da hiena havia organizado, para o dia primeiro de maio, um baile para apresentá-la à sociedade. A jovem chorava noites inteiras, não gostava de bailes, achava-os extremamente aborrecidos, e mais ainda se eram em sua honra. Na manhã do baile vai chorar no ombro da hiena que não entende tantas lágrimas, pois ficaria encantada de ir ao baile. E a jovem então tem uma idéia: vestida com minhas roupas, você poderia muito bem ocupar meu lugar, diz à hiena. Mas esta retruca, não nos parecemos o suficiente, senão iría com o maior prazer. Não, não, diz a jovem, não há problema, a festa é à noite, as luzes são fracas, com um pouco de disfarce ninguém vai notá-la meio a multidão. Aceitou.

As duas entram em um táxi e dirigem-se à mansão já preparada para a festa. Refugiam-se no quarto da moça. A mãe entra e estranha o mau cheiro, tão forte que logo se retira, ordenando a filha que tomasse um bom banho antes de se vestir. Já pronta e arrumada, a hiena percebe que se luvas cobrem os pelos das mãos, o rosto não se disfarça. E logo têm uma ideia. Chamam uma criada, a hiena a mata, devora-lhe as carnes e ossos, sobram somente os pés que ela, saciada, coloca numa bolsa para comer mais tarde. Coloca o rosto da criada sobre o seu, como uma máscara, e está pronta para a festa.

A moça recomenda-lhe que não fique muito perto de sua mãe, pois esta poderia detectar o cheiro e perceber que não era a filha. De resto, não conhecia ninguém, então a hiena não teria problemas. E lá se vai ela enquanto a moça, cansada das emoções do dia, senta-se junto à janela e fica lendo. Uma hora e pouco depois, enquanto lia As viagens de Gulliver, a mãe entra quarto adentro, pálida de fúria, dizendo que mal haviam se sentado à mesa, “o ser que ocupou seu lugar se levantou gritando: “Com que meu cheiro é um pouco forte, não é? Pois não como pastéis”. Dizendo isto arrancou o rosto e comeu-o. Em seguida “deu um grande salto e desapareceu pela janela” (Carrington:1992:35-40).

O que é a identidade? A aparência e as vestes? O interior? O cheiro? Para surrealistas ao serem liberados de suas aparências, propriedades físicas e funções os objetos passam a ser dotados de inesgotável poder de migração. Instaura-se atmosfera de indeterminação e de certeza que evoca um tempo primeiro quando as coisas não conheciam estados definitivos, não havia oposições nem contrários (Moraes:2002:76). Um corpo subversivo envolve noções de superfícies e fronteiras entre interior e exterior.

A pele que separa o fora e o dentro não é também suficiente para definir a identidade. Transferências, troca de papéis, fronteiras fluídas entre espécies e reinos criam personagens fantásticos em contos não menos fantásticos. “A importância de definir superfícies, o medo de invasão, perda da brecha, o desejo de ser penetrada, a fusão, são modos diferentes do questionamento ontológico central a respeito do lugar do sujeito no espaço” (Cottenet-Hage:1993:82). Para Cottenet-Hage, Carrington move-se da idéia da fragilidade do corpo e do self para uma afirmação alegre das possibilidades de regeneração através da re-escrita da história humana ou de versões surreais da busca do Graal ou do retorno da Deusa. As versões são sempre múltiplas, uma logo após a outra, tornando impossível qualquer fixação. Procura reconstruir o mundo de modo a permitir que as mulheres se encarreguem de si próprias e se abram para trocas com o mundo externo. Método de Carrington é contar e recontar histórias na busca de várias identidades e de uma independência intencionalmente buscada.

No quadro “O Albergue do Cavalo da Aurora”, um auto-retrato de 1938 (Ilus3), a figura central tem os traços da artista e está num quarto de criança sem móveis a não ser por uma poltrona vitoriana na qual está sentada e mal acomodada. Mas não é uma menina que está neste quarto e sim uma mulher. Uma de suas mãos se dirige para uma hiena, a outra está suspensa sobre o braço da poltrona que, estranhamente, mimetiza o gesto da mão. Atrás, pendendo da parede, um cavalo de pau com sua sombra e, pela janela, avista-se um corcel branco galopando pela paisagem.

Para os surrealistas, a femme-enfant (mulher-criança) era a mediadora para a criação. No quadro de Carrington o brinquedo da mulher que já foi criança está posto de lado e a criança desapareceu na mulher, cuja vasta cabeleira mais parece uma crina animal. A figura olha a hiena e pressente o corcel correndo lá fora. O cavalinho de pau deixado de lado, a infância emoldurada e sombreada, é também o sacrifício do cavalo. Opera-se assim uma desconstrução, pois, em mitos ou nas praças, o cavalo é montaria de heróis, conquistadores, imperadores, salvadores. Hillman sugere que a delicadeza, a gentileza e o mistério do animal só podem ser percebidos quando o sacrifício do cavalo livra-o do peso heróico e marcial.

Livre do peso cultural, o animal pode figurar a antiga deusa celta, Epona ou o sentido que lhe dava a alquimia, que usava o ventre do cavalo como signo de calor interior para a digestão de eventos, para a incubação. O outro animal na tela assinala não haver mais inocência infantil, pois a hiena, animal carniceiro que é, sempre foi mal vista no bestiário europeu. Desde os antigos gregos se acreditava que mudasse de sexo, de fêmea para macho e de macho para fêmea, a seu bel prazer. É bem verdade que Aristóteles desmentiu essa idéia, mas foi inútil, ela persistiu.

A hiena do quadro tem três tetas cheias de leite o que nos permite entrever a fusão de criatividade biológica e artística, e a necessidade de retroceder até épocas anteriores à linguagem para retomar sua força e a ligação entre os reinos, entre a vida e a morte. A hiena, animal da noite, é transformadora da matéria, devora a carne, limpa os ossos, os resíduos da existência anterior, infantil e socializada. Quando a hiena devora o infantil suas tetas ficam cheias de nutrição, torna-se uma mãe selvagem e o cavalo branco dispara, voa em seu galope, como voara pela janela a hiena na estória de a debutante. Isto é, as metamorfoses trazem maior leveza e agilidade aos movimentos. Alberth aproxima essas duas cenas da noção de abjeção em Kristeva: nos dois casos seria esta a função da hiena, símbolo então da raiva e ressentimento da artista por tentarem colocá-la no mercado de casamento. Abjeção aqui não deriva da sujeira, mas sim da perturbação da identidade, do sistema e da ordem. Aquilo que não respeita fronteiras, posições, regras como fazem as personagens da estória e do quadro, justapondo então a bela e a fera (Alberth:2004:35).

Em 1987, em conversas com Acker para um documentário, The flowering of the crone, Carrington diz que escolheu a hiena porque sempre fora particularmente atraída por elas nos zoológicos que freqüentava desde pequena, e acredita que a grande virtude desses animais é comerem lixo (apudAberth: 2004:32). Em 1999, em entrevista concedida em sua casa, explica melhor, diz “sou como uma hiena, entro nas latas de lixo. Tenho uma curiosidade insaciável” (Alberth:2004:32). Sou como uma hiena, curiosa, sempre remexendo o lixo! Afora o elemento de humor nesta comparação surreal, a identificação parece chocante, a bela tão bela e o animal tão feio, a bela se vê na fera.

Bachelard lembra que se pode ultrapassar formas humanas para tomar posse de outros psiquismos, que se pode ver o animal em suas funções, não em suas formas. E mais, podemos lembrar como em todas as tradições religiosas, antigas ou modernas, e em muitos contos tradicionais, aconselha-se os adeptos, ou personagens, a arrumarem suas coisas todos os dias, a varrerem o lixo, como um exercício básico no caminho do conhecimento. Varrer o lixo, vasculhar o lixo, refazer coisas a partir do que foi jogado fora – a bricolagem – são ações de revisão, discriminação; de separação do joio do trigo; do que pode ser metamorfoseado, do que deve ser jogado fora. Muitas vezes o fragmento jogado no lixo por parecer mudo, pode, se mirado com atenção, suscitar perguntas, respostas, desafios.

Cottenet-Hage pensa que Carrington rejeita representações de corpos tradicionais jovens, nus, sexuais e vulneráveis, “corpos ausentes” e os substitui por híbridos. Os pintores surrealistas também empregaram híbridos, mas na maior parte das vezes, híbridos conhecidos como serias e minotauros. As artistas que estamos tratando usam híbridos, segundo aquela autora, na tentativa de equilibrar polaridades enquanto transcendem o normal; a origem dupla é um a mais, não um a menos. O que se tem nas representações é uma multiplicidade do eu que supera as limitações auto-definidoras. Os híbridos aproximam realidades distantes e não as confundem, nem fundem. E, pensa Cottenet- Hage, o sentido do ser não é gendrado, transcendendo assim as limitações socais de gênero que impõe auto definições. Com isso, assim como com a frágil fronteira entre reino animal, mineral, vegetal e até com as coisas, Carrington e também Varo antecipam temas e elementos que surgirão em algumas artistas do final do século XX.

Ao chegar à terra de exílio, Varo era Bela, jovem, discreta e, sacudindo os lindos cabelos um tanto avermelhados, costumava dizer “sou medrosa” e “muito supersticiosa”. Acreditava na potente interdependência dos seres e dos objetos. Moça ainda morreu de repente na cidade do México, em 1963, deixando fama e obra consideráveis. Ela partilhou as inquietações, a busca de conhecimento e os estudos alternativos das tradições com sua amiga Carrington.


As duas haviam frequentado o círculo surrealista, mas, como outras artistas que por lá passaram, não influíam nas conformações das teorias, muitas das quais envolviam profundas contradições no que diz respeito às mulheres. Naquela cidade não se formou uma rede de apoio entre as mulheres do grupo semelhante a que havia entre os homens. “Eu, que não conseguia perder meu ar provinciano, ficava assustada, temerosa, deslumbrada”, comentou Varo mais tarde (Kaplan:2001:56) Por isso, foi no México, onde as duas se exilaram, que Varo e Carrington se aproximam, ficaram amigas e desenvolvem uma extraordinária colaboração de trabalho. “A presença de Remedios no México mudou minha vida”, comentou Carrington (Chadwich;1985:194).

Varo por influência do pai engenheiro – que a ensinara a desenhar e com quem viajara muito na infância – se interessava, especialmente, por ciência, matemática e objetos mecânicos. Sua linguagem pictórica madura lembra manuscritos iluminados, traduz influência do Renascimento italiano e do norte da Europa, assim como pintores espanhóis que desde menina visitava no Museu do Prado. Varo uniu pensamento de vanguarda com artesanato meticuloso – uma atenção primorosa aos detalhes como se observa também nos quadros de Fontana – em telas pequenas comparadas a joias, para criar universos ricamente codificados, estratos superpostos, tempos condensados, e múltiplos significados subversivos. Como Carrington, colocou a mulher no centro do ato de criação, mesmo que suas figuras tenham se tornaram cada vez mais andróginas. Varo escolheu os pássaros, onipresentes na alquimia, representantes dos vapores que emanam dos processos, como familiares e a coruja como Fera.

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Ilustração 3:
Leonora Carrington, O albergue do cavalo da aurora, 1938.

No quadro “Criação das Aves”, de 1958 (Ilust 4), uma personagem com corpo de mulher e rosto de coruja, meio cientista, meio artista, está sentada junto a uma mesa, desenhando com um instrumento que sai de um violino colocado sobre o coração, usando cores que provém de alambiques alquímicos onde a substância de estrelas é armazenada. Com a outra mão segura uma lente, triangular como o prisma de Newton, que recolhe e amplia a luz da lua que incide sobre o papel no qual desenha pássaros que saem voando por uma janela lateral. A coruja pode ser considerada Fera por ser, desde tempos remotos, pássaro da noite e arauto da morte. Porém, é símbolo ambíguo, pois representa tanto um tipo de sabedoria, como a de Atena que ensinou aos homens todas as artes para se viver em cidades, quanto o saber das bruxas medievais que conheciam segredos mortais e adotavam Lilith com seus pés de coruja pousados sobre dois pequenos leões que domina e suas asas abertas semelhantes as asas fechadas das duas corujas que estão a seu lado. E, muito antes de todas essas histórias, híbridos de mulher e pássaro aparecem figuradas nas pinturas das cavernas e outras representações desde o Paleolítico. A arcaica deusa Pássaro era a expressão do processo de criação, do ciclo vida/morte/vida!

O pássaro “vive em um volume, enquanto nós só vivemos sobre uma superfície. Os pássaros possuem, como dizem os matemáticos, uma “liberdade”a mais do que nós” (Bachelard:1995: 51). O gosto pela metamorfose, lembra ainda Bachelard, vem sempre junto com uma pluralidade de atos como no quadro de Varo, onde a imaginação, no sentido bachelardiano, é o elemento de imprudência que deforma e dissolve fronteiras e estabilidades sólidas enquanto cria novas formas e imagens, provê outros psiquismos. Amplia a possibilidade biológica abolindo fronteiras entre reinos da natureza, entre seres vivos ou objetos inanimados, para atingir um estado de solidão tranqüila e plena de criações.

Por outro lado, Kaplan considera este quadro como sendo a inversão da “Anunciação” pois aqui a ave não anuncia a boa nova, uma outra vida, mas os pássaros mesmos encarnam a vida nova. No quadro há inter-relação entre arte, alquímica e moderna ciência; há vibrações e ondulações que se nutrem mutuamente num ciclo representado também pelos objetos, vasos, alambiques, canos e a vasilha em forma de ovo. Esse quadro pode ser visto como imagem de uma busca paradigmática de beleza e vida através da conjunção de luz e som.

“Pelo cuidadoso arranjo do violino, do alambique, e dos vidros, ela permite que a música e o ritmo de sua própria vida, a substância das estrelas e a luz da lua “alimentem” sua pintura, e lhe confiram vida”(Lauter:1984:85). A imagem difere totalmente das de outras histórias nas quais estátuas ou bonecos são animados, como Pigmalião ou Pinóquio, trazidos à vida por um criador que deseja ser amado, enquanto no caso de Varo há o emprego de forças cósmicas e uma metamorfose da criação e da criadora; a ação é colaborativa, é um ato de amor. O efeito é reforçar a empatia entre formas não humanas de vida. “Ela nos mostra o grau de auto-transformação e colaboração com forças que estão além de nós e são exigidas quando se aspira a trazer algo novo ao mundo” (Lauter:1984:97).

Nas décadas de 80 e 90 do século XX surgem, de modo mais disseminado, práticas artísticas criticando a representação como sendo cúmplice do pensamento logocêntrico/falocêntrico ocidental. As artistas começam a contestar não só as representações do feminino e do masculino, como principalmente qualquer subjetividade concebida como estável.

Cindy Sherman, por exemplo, em performances fotográficas, no início dos anos 80, se transforma em uma inquietante imagem crítica da feminilidade dos filmes B dos anos 50. O trabalho investiga o papel da fotografia na construção do si mesmo unificado e torna explícitas as relações de poder provocadas pelo ato de olhar. Untitled Film Stills (1977-80), é uma série de 65 fotografias granuladas branco e preto que lembram os “film noir”. Embora seja tanto modelo quanto fotógrafa, essas imagens não são autobiográficas. Ela se retrata em vários disfarces da feminilidade estereotipada, cada uma um momento numa narrativa implícita mais ampla. E afirma também, concordando com Iregaray para quem nem mesmo a visão é indiferente, que a câmara não é instrumento neutro, mas um aparato ideológico que enquadra e constrói um ponto de vista particular.

 

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Ilustração 5: Cindy Sherman.

Ao comemorar 94 anos em 2005, a artista Louise Bourgeois, uma das grandes escultoras do século XX, continua uma longa carreira de sucessos, inovações, provocações, e para celebrar se pinta e faz fotografar como Fera (Bête). Usa uma camiseta sem mangas, branca; está sentada e o foco enquadra somente seu tronco; o rosto está pintado como o de um tigre; olhar matreiro, meio sorriso, atenta. Talvez lembrando que faria intervenções, em maio de 2006, sobre o tema Mulher, uma exploração. O eterno fascínio com o corpo da mulher. E com a Fera que tem esculpido nas últimas décadas, as enormes aranhas que começou a fazer nos anos 90 e estão hoje espalhadas pelo mundo, do Brasil ao Japão, dos Estados Unidos e Canadá à Inglaterra e Rússia.

Intitulou estas esculturas Maman (Ilus 6). Algumas, protetoras, carregam no corpo de metal ovos brancos de mármore polido que parecem jóias mas lhes dão aparência de seres do lar, mães acolhedoras. Mas o outro lado das aranhas é assustador, nos contos tradicionais, no sonho das crianças, ou das pessoas, a aranha desencadeia medos infantis secretos e seu tamanho descomunal projeta ampla sombra física e psicológica. Disse a artista que faz essas feras pra explorar questões relacionadas à memória de sua mãe que tinha muito medo de aranhas, mas era deliberadamente esperta, flexível, macia, razoável, sutil. Maman, a escultura é enorme, suas pernas muito longas, no entanto, dão-lhe aparência de elegância e fragilidade. As aranhas não são monstruosas, são poderosas, estranhas e belas.

 

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Ilustração 6:
Louise Bourgeois, Maman, Bilbao, 1999.

Louise Bourgeois, sempre extremamente original, e muitas outros artistas jogam com novas idéias a partir do movimento livre de identidades e sexualidades, e também da construção de novas narrativas (Collado:1999). Para desestabilizar o masculino/feminino, trabalham em obras que possuem outras configurações éticas e formais. Novas estratégias vão criando uma epistemologia que tende ao plural e que já se fazia presente nas artistas do começo do século XX sobre as quais fizemos a breve leitura acima.

Nesta mesma linha, Zoe Leonard ironiza o corpo estereótipo da sedução ao refazer, a seu modo, a foto de Marilyn Monroe na famosa folhinha: um corpo de mulher deitado sobre uma seda vermelha berrante, sinuoso, sorrindo. A pose nos parece a mesma, a diferença sendo que a moça ostenta enormes bigodes. É mais uma artista que parece insistir na indistinção entre aparência e ser. Leonard tem outros trabalhos que destroem as figuras sedutoras de mulher. Um deles é Preserved Head of a Beard Woman, de1991 (ilus.6), quatro fotografias de uma cabeça encontrada no Musée Orfila, em Paris. A etiqueta do museu registrava simplesmente: “busto mumificado, tamanho natural, de Germaine D.” Como a pesquisa que empreendeu nada revelou, a artista visualizou o destino de uma mulher que vivera em torno de 1900 e fora exibida como “abnormal” em um museu de história natural. Aqui a artista se multiplica em voyeur e em detetive.

Iniciamos este texto com a Senhora dos animais, feras selvagens em seu entorno e fizemos uma leitura da menina hirsuta, a Fera do século XIV, retratada por Fontana no momento em que o silêncio da mulher começava a ser imposto e a misoginia aumentava. O retrato de Fontana devolve a Tongina a dignidade tão almejada por seu pai, isto é, um ser como outros tantos, em sua bela singularidade e não tratada como monstro ou “figura de curiosidade”.

Nos debruçamos a seguir sobre obras de artistas que em meados do século XX trataram de modo diverso a relação entre os seres vivos, os inanimados e o cosmos; que perceberam que a vida é meio animal e não humana e também meio política e discursiva com quer Braidoti (2006:37); que existe uma co-dependência entre espécies que ancora perspectivas diversas e pode ser construída em inter-relações constitutivas da identidade de cada um, ou da relação transformadora, simbiótica, que faz híbridos, isto é, altera a ‘natureza de cada um”.

 

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Ilustração 7:
Zoe Leonard.
Preserved Head of a Beard Woman, 1991.

Terminamos apreciando este tema em alguns momentos do final do século e com outra cabeça barbada, a de uma mulher do 1900, tornada obra por uma artista do final do século XX. Pontuamos algumas variações em torno do tema central, a relação entre mulheres, animais e ‘outros’, historicamente assentada na cultura ocidental moderna e bastante pejorativa, ao mesmo tempo que semeamos indagações que permanecem sem respostas, abertas e mutantes.

O elemento subversivo nas últimas décadas não tem sido a denúncia de injustiças sociais contra as mulheres, mas o rompimento do sistema de representação dominante. “Todos/as podemos ser outro/a (Collado:1999:79)”. As artistas se aproveitam da ideia de maleabilidade feminina para tornar evidente a falácia de um corpo inato, biológico, suporte instintivo de um gênero indistinto. O corpo instável oferece oportunidade de novas aberturas, novas identificações, novos prazeres. Ideias elaboradas durante todo um século e que se projetam para o novo milênio.

São Paulo, 2006.

 

Nota – Agradeço a Margareth Rago a troca de ideias e o convite para participar de seminário na Unicamp, em novembro de 2006, no qual apresentei esse texto e a Tânia Navarro Swain que o publicou em Labrys, nº 10, jul/dez 2006. Essas reflexões apareceram primeiro na Tribuna do Norte, em 2003, por incitação de Ceiça Almeida, a quem agradeço ainda uma vez, assim como sou grata a Mariza Bosco pelas sugestões de revisão.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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