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Cora Coralina – A casa velha da ponte
Norma Telles
Ana Lisboa dos Guimarães Peixoto Bastos nasceu em 1889 numa casa antiga de Goiás Velho. Casa ancestral, colonial, assombrada por memórias de tempos e glórias passadas e pelos fantasmas da infância. Ali cresceu e se fez jovem. “Meus anseios extravasaram a velha casa”, conta. “Andei … Pobre, vestida de cabelos brancos voltei .. ”
Cora Coralina
Ana saiu e fez um bonito nome de doceira, fez toda uma vida. Voltou Cora Coralina, poeta, aquela figura de anciã suave e forte que nos acostumamos a ver durante os últimos anos de sua vida. Ana fez só o primário, poetava desde os 14 anos. Quando, ao morrer, deixou para sempre sua casa de paredes brancas des-cascadas à beira do rio Vermelho, em abril de 1985, Cora Coralina era doutora honoris causa pela Universidade de Goiás, membro da Academia Goiana de Letras. Recebera, como poetisa e ficcionista, o Troféu Jaboti, em 1982, e o Juca Pato, como intelectual do ano em 1984. Publicara Meu Livro de Cordel, Poemas dos Becos de Goiás, Vintém de Cobre.
A obra que agora vem a público traz Cora Coralina contista. São dezesseis histórias breves, num estilo vigoroso e conciso ao qual não falta um preciso toque de ironia. Uma linguagem que mostra que a fronteira entre a palavra oral e escrita é permeável e o intercâmbio entre elas, constante. Num estilo carregado de vida, reescreve os seus temas favoritos: as experiências das pessoas comuns, os oprimidos, os esquecidos.
A mulher, personagem dileta, aparece em vários contos. Em Procissão das Almas temos a mulher colonial, a maldizente, espiando por detrás das rótulas, “documento mais expressivo de segregação da mulher dentro da casa senhorial”. Há Mequita, que “foi moça como toda moça”. As senhoras-donas do beco do Calabrote. em Minga, Zóio de Prata. A D. Placinda, da excelente história O Lampião da Rua do Fofo. E há muito mais nos enredos do trágico da vida cotidiana. A familiaridade da autora com as personagens de vários estratos sociais, com os costumes de vários becos. Uma combinação de lembranças que retratam não só vivências humanas mas também um quadro precioso dos costumes de uma já distante vida brasileira. Antigamente, por exemplo, ocorreu um enforcamento – e da trama da história surge o conto Louca de Goiás.
Emily Dickinson, a grande poetisa americana que em vida só ganhou prêmios pelos bolos que fazia, disse numa carta: “A natureza é uma casa assombrada – a Arte, uma casa que tenta ser assombrada”. E a afirmação da interdependência da auto- dramatização e de criação literária. A aceitação da metáfora gótica de estar presa ao assombro de uma casa como essencial para a prosa-poesia. Cora Coralina, grande poetisa brasileira, que dos doces que fazia tirava a maior glória, enraizada na casa ancestral (A Casa Velha da Ponte), dramatiza e cria a partir de enredos que poderiam ser de outros lugares e outros autores, como afirma na introdução ao livro. Histórias diferentes, peculiares e sedutoras que a inscrevem na arte tradicional dos grandes contadores de histórias. A arte de Cora Coralina.
ISTOÉ 5/3/1986