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Literatura e imaginação criadora
Norma Telles
"A Word is dead
When it is said,
Some say.
I say it just
Begins to live
That day".
Emily Dikinson
Tradicionalmente, a antropologia tem estudado a humanidade e sua obra; o comportamento dos homens e das comunidades como tentativa de dar uma resposta significativa a uma situação particular. O "trajeto antropológico", segundo Durand, é uma espécie de caminho exploratório através do "dizer" da obra, que, por sua vez, num incessante vaivém, torna perceptível a sinfonia cultural no seio da qual o subjetivo e o coletivo se nutrem num contexto mais vasto, pois físico, social, histórico. A cultura torna-se um espaço real/imaginário pensado / sonhado / construído / reconstruido; o lugar de epifanias, ritual de passagem do sentido; do pluralismo fundador da sociabilidade, que, formando um politeísmo de valores, exige uma pluralidade de perspectivas para ser apreendida.
Monumentos, plantações e coletas, instituições políticas, destruições são obras humanas. Assim também mitos, lendas, histórias. A literatura, por seu lado, é um elemento fundamental das sociedades contemporâneas. É, no dizer de Bachelard, a linguagem que nos revela a nós mesmos, elemento indutor que provoca a vontade de expressão. O romance, típico da modernidade, é para Luckács o épico das culturas desintegradas, daquelas que perderam o sentido da "totalidade de significado", mas que, não obstante, o procuram na experiência fragmentada do milieu contemporâneo. Mais do que qualquer outro meio, o romance procurou, através de permutações fantásticas, recuperar o mito das ruínas das antigas convenções e relações. Por isso, não só estabeleceu algum sentido para a perduração das verdades num mundo cambiante, como também conservou a habilidade de construir novas veredas. A criação reintegra mitos coletivos e reincarna os pessoais, fazendo convergir os dinamismos bioantropossociais e imaginais. O ato configurador-criador mostra a atividade demiúrgica, o ser e sua obra, seu poder de "ler" e entender a natureza e as coisas através da palavra.
A obra literária desemboca diretamente num horizonte antropológico mais vasto. As obras literárias culturais não se submetem unicamente ao ponto de vista de uma apropriação histórica, psicológica ou sociológica. Elas "medem" a distância irredutível e a intimidade incessantemente presumível dos homens em seu mundo. Este afastamento e essa compilação repousam num jogo de transposições, símbolos, metáforas, que não só atravessa a linguagem, mas toda a vida, e que enraíza o indivíduo no social e no mítico. A atração contraditória que se encontra em toda obra a coloca no dinamismo da sociedade.
É na encruzilhada antropológica, onde os fios de várias disciplinas são tramados/destramados por Hermes, senhor dos caminhos / descaminhos, ou mantidos por Hécade, senhora das encruzilhadas, que as criações culturais adquirem todas as suas significações e que o imaginário não corre o risco de ser trancado numa análise racionalista imóvel ou instrumental que asfixiaria sua pregnância numa lógica mecanicista e linear do social.
A compreensão dinâmica da obra literária apela para semantismos plurívocos do tecido não lingüístico, e então percebe o sentido como aquilo que encerra erros sem os reduzir arbitrariamente a uma dimensão única. A confluência das linhas que Hécate segura na encruzilhada implica então uma ruptura com a interpretação textual do discurso literário. Concede-se urna pregnância incontornável, prioritária, a ressonâncias culturais sem se deixar de lado a imaginação criadora. A busca das ressonâncias culturais implica também um trabalho de desvelamento de tudo o que foi deixado de lado pelo pensamento ocidental oficial e acadêmico — como, por exemplo, a literatura escrita por mulheres, que demonstra uma articulação de mundo diferente daquela descrita pelos homens, ou mesmo o conhecimento da Tradição.
Isto desemboca numa enorme riqueza e complexidade cultural que ameaça o edifício construído pela ideologia triunfante pôs-iluminista. Afirma Durand que a questão é não alienar nenhuma parte da herança da espécie, não desprezar elementos culturais, nem "pretender cortar a Ciência do homem do léxico cotidiano, do canto e da lamentação que os poetas, esses mantenedores de mitos, exprimem". Na abordagem da imaginação criadora, a nova antropologia segue as lições de Bachelard. A noção bachelardiana de imaginação inovadora é em relação à tradição filosófica ocidental, que a considera "a louca da casa". Pensador do novo espirito cientifico, Bachelard foi também o pensador da poética da imaginação. A fenomenologia que propõe diz respeito às nuances da linguagem, que são nuances do ser. Isto implica passar das imagens não vividas às imagens que a vida não prepara, mas o poeta cria. O pensamento que se exprime numa nova imagem se enriquece ao enriquecer a língua. O ser se torna palavra. A palavra é insinuação e fusão de imagens.
Hillman dirá, precisando, que a imagem, portadora de uma complexidade polissèmica, é uma relação de significados múltiplos e autolimitantes, incluindo eventos históricos, humores, detalhes qualitativos e possibilidades expressivas. A imagem é anterior à representação, ela "deforma" as formas pragmáticas fornecidas pela percepção e é, portanto, um dinamismo reformador das sensações e fundamento da vida psíquica. “A imaginação inventa mais que coisas e dramas”, escreve Bachelard, “inventa o caminho novo, o novo espírito; abre os olhos para tipos novos de visão?” A imaginação temporalizada pelo verbo parece a este último autor a faculdade hominizante por excelência.
"O estudo de suas imagens é o estudo do homem...", disse o poeta Wallace Stevens. Sendo daimon a palavra grega para as figuras da imaginação, lembra Hillman, a antropologia se torna daimonologia. Um modo de conhecimento que busca a incessante troca entre o dinamismo imaginário subjetivo e as intimações que emanam do meio cósmico e social, através da vontade pluridisciplinar, no seio do qual a literatura se toma um campo privilegiado para decifrar a realidade complexa do humano, pois pode ser a revelação da nossa unidade para além de todas das fragmentações atuais.
*Publicado in Ágora, Ciência e cultura, ano II, nº 4, out/nov/dez/90.
OBRAS CITADAS
BACHELARD, Gaston. O direito de sonhar. SP: Difel, 1985.
_________. La poétique de la rêverie. Paris: PUF, 7ª edição, 1978.
CASTELO BRANCO, Lucia.“O sonho de que temos a linguagem”. Colóquio-Letras, 1997, p.18.
DINESEN, Isak. “The Blank Page” in Last Tales. New York: Vintage Books, 1975.
DURAND, Gilbert. Les structures anthropologiques de l’imaginaire. Paris : Bordas, 1969.
GIMBUTAS, Marija. The language of the goddess. New York: Harper & Row, 1989.
HILLMAN, James. Re-Visioning Psychology. New York: Harper & Row, 1975.