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O

O Livro de Margery Kempe

Norma Telles

"O Deus das mulheres não é uma Pessoa, nem um Ente, nem uma Substância:
é a divina potencialidade expressiva delas próprias".

Luisa Muraro

Foi um acaso, folheava uma antologia quando me deparei com fragmentos datados de 1436 e, de imediato, fiquei cativada. Os fragmentos que encontrei formam, com muitas outras páginas, o relato que uma mulher de uns sessenta e cinco anos fez escrever contando seus percursos por estradas empoeiradas da Terra e pelas topografias imaginais de um mundo contemplativo. Uma mulher inteligente e ativa, uma comerciante da emergente burguesia citadina, que viveu como tantas outras mulheres no final da Idade Média, se casou, teve quatorze filhos e, diferindo da maioria, se mostrou uma visionária singular e uma viajante intrépida.

O Livro de Margery Kempe, como ficou conhecido o manuscrito, é formado por preâmbulos de escrevinhadores e dois livros por ela ditados e revisados. As primeiras informações discorrem sobre o processo de feitura do livro. Não se sabe quem era o escrevente, se um ou outro sacerdote ou até mesmo um elemento protetor criado pela própria narradora (Windeatt:2004:6). Kempe conta que o Senhor e Maria, e também o Espírito Santo, a aconselharam a fazer seu livro, e fazer dele um livro das revelações que recebera e de seus sentimentos, sentimentos significando aqui percepção mística, intuição e presciência, esclarece Windeatt (46). “xx anos ou mais depois da época em que recebeu a primeira revelação”.

De qualquer modo, as notas introdutórias situam o relato dentro dos parâmetros aceitos tanto pelas hagiografias, quanto pela comunidade, e ao fazê-lo diminuem o impacto de radicalismo da ação de uma mulher, que ao invés de aceitar as leis de silêncio impostas em geral às suas companheiras, narra sua vida e a faz anotar demonstrando percepção profunda do poder da escrita meio a cultura eminentemente oral na qual vivia. E mais, se a língua da escrita era então o latim dos eclesiásticos e poderosos, ela rompe com esse monopólio ao escrever em vernáculo, em inglês médio que então começava a ser empregado por poetas como Chauser, seu contemporâneo exato. Kempe confia sua vida à memória textual e esta difere da oral por alinhar informações ou lembranças, que não estão sempre disponíveis, mas devem ser buscadas, de modo linear e ordenado por um único principio, letras por exemplo, a memória é um instrumento que serve a razão (Paris:1990:128).

O amanuense logo de início esclarece, “esse livro não é escrito em ordem, uma coisa depois da outra, mas segue cada assunto conforme ele vinha à mente da criatura no momento de ser escrito (135 )”. O relato feito por essa ‘criatura’, como ela se autodenomina em grande parte do texto, não segue uma ordem cronológica. Porém, não há duvida, é orientado por algum sistema mnemônico corrente na época, pois dela se diz que possuía memória fabulosa e disto deu provas ao lembrar com precisão de fatos distantes ou dos inúmeros livros e escrituras que foram lidos para ela que os soube bem empregar como provas a seu favor em situações difíceis.

À Memória os gregos atribuíram a qualidade de deusa e a denominaram Mnemosine, mãe das Musas. Mnemosine emprega as estruturas da narrativa, da canção, do épico, da tragédia, dos mitos e imagens fortes que mantêm coesa uma narrativa; não se preocupa com fatos ou datas, ou com sequências lineares. Ela evoca mais do que descreve e nesse estilo de memória, “o fatual e o simbólico, o histórico e o mítico, os eventos ‘reais’ e os acontecimentos ‘imaginários’ estão inextrincavelmente entrelaçados (Paris:1990:121)”.

A memória antiga é ativa, permite o acerto ou modificação do significado de eventos. E, note-se, Menmosine é uma figura feminina, uma voz da alma, evocativa, pungente assentada no coração, isto é, palpitando no corpo.

 

Ecos:

“A memória é a costureira, e costureira caprichosa. A memória faz a sua agulha correr para dentro e para fora, para cima e para baixo, para cá e para lá. Não sabemos o que vem em seguida, o que virá depois. Assim, o ato mais vulgar do mundo, como o de sentar-se a uma mesa e aproximar o tinteiro, pode agitar mil fragmentos díspares, ora iluminados, ora sem sombra, pendentes, oscilantes, e revirando-se como a roupa branca de uma família de quatorze pessoas, numa corda ao vento […] nossos atos mais comuns, estão envoltos num tremular e palpitar de asas, num apagar e acender de luzes (Woolf:1978:44)”.

A arte da memória da Antiguidade clássica ao século XVII foi estudada pela historiadora Frances Yates que mostra como esta arte inventada pelos gregos se baseava em uma técnica de imprimir ‘lugares’ e ‘imagens’ na mente. Através dessa arquitetura, os traços da alma e um conhecimento enciclopédico da mente poderiam ser alocados em edifícios imaginários, espaços que abrigavam as estátuas ou figuras. O esforço para formar similitudes na memória encorajava uma variedade de invenções individuais; as figuras teriam melhor efeito se lhes fosse atribuído efeitos cômicos, exageros ou desfigurações, sempre ligadas a similitudes corporais.

O Livro de Margery Kempe é estruturado por algum sistema desse tipo e, ao mesmo tempo, estrutura a memória através de sua história por espaços públicos, estranhos ou novos para ela e paralelos percursos pelos caminhos da Imaginação ativa, isto é, pelo espaço entre a percepção sensorial e as categorias do intelecto. A imaginação que as filosofias medievais mencionam como “intellectus agens”, diferentemente da fantasia como a entendemos, possui função noética ou cognitiva própria (Corbin:1977:vii). O resultado é um testemunho de vida longe do mundo doméstico, em arquiteturas públicas como igrejas ou catedrais, até espaços de domínio exclusivamente masculino como priorados, chancelas ou capelas nas principais catedrais; em teologias e em encontros no mundus imaginalis que “imaterialisa” as formas sensíveis e “imaginalisam” as formas intelectuais às quais dá forma e dimensão (Corbin:idem:viii).

Kempe localiza eventos de sua vida em importantes espaços públicos com o que documenta também a distribuição desses espaços por gênero e classe social e, principalmente, a distribuição de poder entre homens poderosos. Em sua vida “essa criatura” partilhou a cena com Arcebispos, reis e burocratas que aparecem agrupados em estórias. Partilhou o palco também com os vizinhos, com os quais andava sempre às turras, com marinheiros, viajantes e peregrinos, com outras místicas, suas contemporâneas ou suas antecessoras as quais escolheu como modelos ou mestras.

Lugares e personagem retornam a sua vida no momento em que ela a confia à memória textual, pois confia na Voz de Mnemosine que olha para trás, para baixo e para dentro sem precisar retornar aos locais em que estivera para poder falar sobre eles, como souberam bem escritores modernos como Colette, Proust e Woolf.

Margery se diz iletrada, mas estudiosos mostram que é preciso nuançar essa afirmação. Iletrada, no período, queria dizer que alguém não lia e escrevia em latim fluente. Ela podia ser iletrada, mas demonstra ter familiaridade com muitos livros; chega mesmo a dizer que conhecia toda uma biblioteca! Percebe-se a influência, entre outros, dos de Santa Brígida, da beguina Marguerite D’Oignt e de Richard Polle autor do livro de piedade mais famoso do período. Há também influência, em sua presença pública, da teatralidade dos mistérios medievais, peças que interagiam com a plateia convidando-as a serem atores nas estórias da Bíblia. Uma das peças mais populares era a de Digby sobre Maria Madalena, personagem que permeia toda a narrativa de Kempe (Berrigan1999:13).

Margery faz um récit do percurso, com muitos meandros e desvios, que a conduziram a si mesma, tornaram ‘aquela criatura’, como se designa em grande parte do relato, em Magery Kempe, ser humano honesto e devoto, agressiva e briguenta, medrosa e corajosa, boa criatura, que luta por espaço próprio, detestada por alguns, bem vista por outros, e que se desdobra, de filha, esposa, mãe e comerciante em várias, a peregrina, a visionária, a profeta, a santa, a megera, a contadora de histórias como afinal prefere se qualificar. Ela não foi uma só, foi tantas! dezenas de narrativas e de mensagens a divulgar.

LYNN

Margery Burnham nasceu em torno de 1373, na portuária cidade de Lynn, na rica região de Norfolk, filha de John Burnham, membro da próspera classe média emergente, um homem que foi por cinco vezes prefeito da cidade e a representou no Parlamento. Ela fez anotar o orgulho de pertencer a essa família importante cujas boas relações de amizade certamente terão lhe valido mais tarde na vida.

Lynn está situada na Anglia Oriental, uma cidade instalada entre dois rios, mencionada pela primeira vez em um documento do século X – hoje os habitantes se orgulham dos mil anos de história. A cidade se desenvolvera durante uma pequena idade do gelo (final do XII ao XVII) meio aos males trazidos pelos cavaleiros do apocalipse que então devastaram a Europa: fomes, pestes, revoltas, heresias, perseguições, guerras.

O frio e em alguns casos pesadas chuvas, prejudicaram as colheitas e a fome se instalou no continente, houve mesmo relatos de canibalismo. Efeitos se fizeram sentir nas ilhas britânicas. Somadas essas más colheitas às epidemias, houve enfraquecimento da produção e da economia. Em consequência, arrebentaram várias revoltas camponesas e em 1347 surgiu o primeiro surto da peste negra trazida por navios genoveses que vinham da China. Os estudiosos pensam que neste primeiro surto (1347-1369) o numero de mortes correspondeu a um terço da população mundial. Outras doenças como febre tifoide, disenteria, catapora e sarampo, mais ciclos de peste continuaram castigando os europeus.

Na cidade de Lynn metade da população morreu ou fugiu durante a peste negra; os que ficaram enriqueceram, principalmente devido à manufatura de lãs e ao comércio que faziam pelo mar do Norte, até a Escandinávia, como membros que eram da Liga Hanseática. A Inglaterra, durante a vida de Kempe, era considerada uma nação próspera, mas politicamente havia muita instabilidade. A guerra dos Cem Anos, entre Inglaterra e França, que atravessou a vida da peregrina, foi em geral tratada de maneira leve por seus conterrâneos por considerarem que o inimigo não possuía riquezas monetárias atraentes.

O Cisma Papal (1309-1377) e a decantada decadência da Igreja – que então recebia duras críticas – tiveram mais impacto no pensamento e na cultura. A leitura da Bíblia, recém-traduzida para o vernáculo, permitia várias interpretações e os reformadores, chamados lolardos, começaram a crescer em número. Na região habitada por Margery, houve um erudito famoso, John Wycliffe, que teceu críticas firmes ao comportamento do clero e propôs um acesso direto aos sacramentos e às preces. Os lolardos embora não formassem um grupo organizado acabaram se tornando uma ameaça ao rei e à Igreja e, indiretamente à Margery Kempe, e muitos outros como ela que buscavam um modelo religioso alternativo.

Lynn foi o local onde ela nasceu, se casou, teve filhos e, parece, viveu seus últimos anos, pois as derradeiras menções a seu nome, em 1438, são as notas de admissão como membro de poderosa guilda local à qual seu pai também pertencera, e mais uma última menção no ano seguinte. Dessa cidade partiu para suas viagens, para lá sempre retornava antes de partir novamente.

Meio as mudanças e turbulências, Margery contraiu matrimônio em 1393: “Quando essa criatura estava com xx anos ou mais, casou-se com um respeitável burgeys e logo se viu grávida como quer a natureza (175)”, registra nas primeiras linhas. Ela se casou com John Kempe que recebera o mesmo nome do pai, ligado ao comércio internacional especialmente com a Prússia, mas que desempenhou um papel menor do que ele, ou seu sogro, na vida econômica da cidade. Porém, John foi camareiro em Lynn em 1394, como seu pai fora antes em 1372 e 1381 e segundo a esposa era um homem afetuoso. Nos registros estava inscrito como cervejeiro com taberna na central Rua Fincham (Windeat:2004:52).

POST-PARTUM BLUES, OU, RITMOS INFERNAIS

O relato prossegue como uma balada triste: “tendo concebido, ela foi afligida por severos ataques de enfermidade […] e depois que sua criança nasceu, não confiando fosse continuar viva”, pois continuava se sentindo muito mal, chamou um confessor, mas esse estava apressado e não lhe proporcionou tranquilidade. A enfermidade se apossou “dessa criatura que ficou fora de seu juízo e foi surpreendentemente atormentada e perturbada por espíritos por meio ano, viii semanas e alguns dias (200-1)”.

Nesse tormento no qual se encontrou envolta e que a levou às fronteiras do humano, algumas figurações a afligiam sem dar trégua, demônios cujas bocas eram “inflamadas”, estavam sempre cheias de chamas, vinham para cima dela, como se fossem engoli-la; outras vezes como se fossem bater-lhe com os cascos potentes, tormentos que aconteciam noite e dia, dia e noite sem parar. E esses diabos não eram silenciosos, não lhe permitiam repouso gritando ameaças todo o tempo, ordenando que abandonasse suas crenças cristãs, seus amigos, seu pai e sua mãe (única menção que faz a ela no livro), seus amigos; e, incitada por eles, dizia muitas palavras “vituperiosas e muitas palavras más”, esqueceu toda virtude e toda bondade e, ao invés, desejava tudo que fosse malvadez – “wykkydnesse”(202); o que os espíritos mandassem, ela fazia.

Margery acreditava que teria mesmo matado várias pessoas, instigada pelos demônios e, para dar testemunho dessa possibilidade, conta que cortou a própria mão tão violentamente com mordidas que as cicatrizes ficaram visíveis pelo resto de sua vida e também que rasgou a pele de seu corpo, no lugar do coração, com suas unhas. E isso porque não tinha nenhum instrumento à disposição, senão teria feito coisa pior, e tudo isso enquanto permanecia fortemente amarrada á cama, tanto de dia quanto de noite, sem pode agir segundo sua vontade (220).

E já havia muito tempo que estava assim enferma quando, certa feita, estando deitada e sozinha, pois nem o marido nem seus guardiões estavam com ela, “o misericordioso senhor Jesus Cristo, venerado seja seu nome […] apareceu para essa criatura que o havia traído, com a aparência de um homem atraente e belo e o mais amável que jamais meus olhos haviam visto (221)”. Ele sentou-se à beira de sua cama com tal expressão de felicidade que ela se sentiu fortificada, e ele lhe perguntou: “filha, porque me traíste? eu nunca te traí (232)”.

Assim que pronunciou essas palavras, ela viu surgir uma luz muito brilhante onde ele penetrou, sem se apressar, mas graciosa e gradualmente, e desapareceu no ar. E logo a criatura se viu restabelecida em seu juízo e em sua razão, assim como em tudo que era antes, e seu marido ficou contente e, embora os guardiões não concordassem, ele lhe devolveu as chaves e ela pode soltar-se, comer e beber com suas mãos e desde então voltar a ser a depositária das chaves da casa.

Coro:

Os empregados murmuram um bordão, sua desconfiança quanto à recuperação; os guardiões em estribilho expõem sua descrença e se opõem à devolução das chaves para ela.

O marido

Sentindo, porém, ternura e compaixão – “tendyrnes and compassyon” – expressa sua alegria e confiança na esposa devolvendo-lhe as chaves da casa e de sua vida.

PANO DE FUNDO

A loucura na Idade Média era vista como uma luta cósmica entre o bem e o mal, mas também era explicada, cotidianamente, pela teoria dos quatro humores, como um desequilíbrio entre eles, uma mistura de causas físicas com questões morais, como punição por pecados ou por falta de fé. Na Inglaterra, como no continente, a família deveria cuidar da pessoa, mas, como o rei tinha em casos de pessoas ricas um interesse pecuniário, representantes da coroa consultavam um júri local e as partes interessadas, inclusive o sujeito em questão. Representantes da coroa eram nomeados como guardiões e acompanhavam o período de reclusão do insano.

Para a enfermidade do corpo eram prescritos alimentos com determinadas especiarias como pimenta, cominho, canela, cravos, e outras, tidas como os melhores reguladores dos humores. Para a enfermidade da alma, os conflitos morais, a experiência da loucura era investida de contexto cósmico, metafísico, embora para seus conhecidos e vizinhos, para quem foi sempre fonte de constrangimentos e irritações, não tinham dúvidas que ela era simplesmente mais uma mulher louca.

COMENTÁRIO

“É preciso mergulhar na noite abissal da memoria feminina para sondar as possibilidades criativas explorando novos caminhos pelo e para o mundo assim como para o conhecimento (Rich)”.

DEMÔNIOS ABISSAIS

Certa feita, Margery tentou negociar com Jesus, como sempre fazia, pois não queria enxergar ou ouvir os amaldiçoados condenados ao fogo eterno, somente aqueles que seriam salvos. Ela recusou esse conhecimento penoso preferindo pensar que a sugestão fora derivada de artimanhas do demônio para enganá-la. Como punição pela incredulidade Jesus a abandonou então aos demônios e durante doze dias tolos pensamentos e horríveis visões a atormentaram. Via padres por todos os lados exibindo as partes íntimas, ou o membro, e se sentia compelida, por instigação dos malignos, a “se prostituir com todos eles”. As “visões abomináveis” não desapareceram até que ela tivesse aprendido a lição.

“A patologia sexual aqui reveste um agudo conflito entre o desejo de Margery por uma salvação universal e a crença ortodoxa de sua religião segundo a qual o inferno é essencial para a fé cristã (Newman:1995:130)”. Margery passou a vida sendo inquirida, sofreu mesmo um processo formal por heresia e, portanto, não poderia se dar ao luxo de negar o fogo eterno por mais que desejasse fazê-lo. A ideia da condenação eterna não agradava à muitas mulheres e a partir de meados do século XII, bem antes dos teólogos terem definido com detalhes o purgatório, este captou seu interesse e as devotas se dedicaram ao seu apostolado como extensão do papel tradicional de carpideiras, mostra Newman. A punição de Margery por se recusar a testemunhar a visão dos poderes infernais foi ser subjugada por outras visões aterradoras no campo em que era mais vulnerável e a danação se tornou uma possibilidade assustadora através da humilhação devido à luxúria desmedida, sugere Newman.

Outras tentações apareceram na vida de Margery em momentos diversos, como, por exemplo, quando se sente muito atraída por um homem na igreja e marca encontro com ele para a mesma noite; ele não aparece e ela se diz enganada. Note-se que não se pode ter certeza se isso é fato ou ficção, mas não importa, a sexualidade tentava Margery! Porém, o assunto não se esgota em termos da sexualidade ou questões de fé. Aponta também para os exemplos de vida que Margery escolhera para si, o de Maria Madalena em primeiro lugar. Margery tenta seguir os passos da ‘pecadora arrependida’, apóstola preferida, então pode sempre ter calcado as tintas de fantasias sexuais, era preciso ser pecadora em alto grau para alcançar a santidade resplandecente. Margery moldou sua vida no padrão da lenda de Madalena cuja transformação de pecadora em a mais amada de Jesus lhe parecia, como a muitos contemporâneos, um esperança e um belo exemplo de salvação.

Maria Madalena aparece nos evangelhos em momentos cruciais como durante a crucificação de Jesus e sua ressurreição, tradicionalmente era identificada com a mulher que na casa de Simão banhou os pés de Jesus com suas lágrimas, enxugou-os com seus cabelos e perfumou-os com bálsamos. Era também identificada com Maria da Betânia, irmã de Lázaro e Marta que Jesus defendeu quando sua irmã a criticou por não fazer os serviços domésticos, dizendo que ela escolhera a melhor parte ao sentar a seus pés e escutar suas palavras.

Maria Madalena, rezava a lenda, pregara em Marselha, convertera os reis e a população, quando chegara de barco com as outras Marias, a de Nazaré e a da Betânia logo depois das Ascenção de Cristo, quando foram perseguidas na Palestina. Por suas pregações era chamada a Apóstola dos Apóstolos. Então fora também viajante e pregadora, convertera as pessoas e terminara a vida como eremita no deserto. Seu culto era muito popular na região de Margery e todos os anos se festejava seu dia. Para Kempe ela foi a figura identificadora na narrativa e em um trecho Margery escuta Jesus descrever seu dom para Madalena como “lágrimas de contrição, devoção e compaixão (43)”. As lágrimas de Madalena foram de contrição quando pela primeira vez banhou os pés de Jesus; de compaixão pela morte de Lázaro e de Jesus e de devoção pelo Cristo ressuscitado (Berrigan:1999:15). O dom das lágrimas une todos os aspectos e figurações de Maria Madalena.

À seus modelos Margery agrega outras mulheres como Maria Egipciana que segundo a lenda medieval também fora prostituta na Alexandria do século V, e em Jerusalém sofrera um processo de transformação, derramara lágrimas amargas de arrependimento e se tornara eremita vivendo no deserto. E mais, Santa Brígida da Suécia, Angela Foligno, que tomaram o caminho religioso depois de terem sido casadas e terem filhos, a beguina Maria de Oignies, Clara de Assis, Maria de Nazaré, a mãe de Jesus especialmente, faziam parte da vida de Kempe. Ela molda sua vida nessas estórias e então molda a historia que reflete a força do padrão de sua vida.

Ao representar seus demônios e as questões que lhe surgiam como um drama cósmico, ao expressar uma insanidade que reconhece em termos metafísicos, ela adquiriu um controle sobre seu destino que lhe era negado pela sociedade, e se colocou numa tradição de pietismo que a empurrou para o mundo mais amplo do que o das suas circunstâncias cotidianas. “A percepção de Margery Kempe de sua loucura foi, em breve, uma libertação (Roffe:2000)”.

O espaço visionário pressupõe a transmutação da matéria sensorial; as imagens descritas formam uma psicogeografia onde paisagens e eventos são reais, sem dependerem de uma topografia positiva ou uma história temporal (Corbin:1977). O pensamento aqui é situacional, define a situação particular da vida humana em relação a um cosmos, no caso o cristão, tal qual o relato descreve, relato este que contém a emoção como nota da verdade que traz em si. O romance espiritual marca uma ruptura de plano, como fica claro na vida posterior de Kempe, e pressupõe, no transcurso, uma metamorfose, uma liberação e salvação obtida através do conhecimento da experiência e desta dramaturgia que é a reconquista do mundo da alma (Corbin:1980).

MUNDANIDADE:

Kempe deixou seu quarto ciente que sua vocação nessa vida era servir ao Senhor e pregar sua fé. No entanto, no início não desistiu de “seu orgulho e modos pomposos” e não escutava os conselhos do marido nem de ninguém mais. Vestia-se vistosamente, com peças muito coloridas, e mesmo que murmurassem críticas a seu respeito, ou fizessem comentários vergonhosos sobre ela, não deixava de usar fios de ouro e cordões para decorar seus cabelos. Às peças de roupa, em geral longas, juntava tiras estreitas de tecido usadas separadamente e colocadas sobre os ombros como parte de um capuz (Windeatt:2004:57). A vaidade e as roupas femininas eram um dos temas prediletos de ataque dos pregadores de então.

O período entre 1300 e 1400 foi o primeiro na Idade Média que assistiu a emergência de uma moda reconhecível, nota Braudel. As roupas eram muito caras; a lã o material mais importante e as sedas o tecido mais caro, tanto nos brocados italianos e otomanos quanto nas finíssimas peças que vinham da China através da Rota da Seda. As peles se tornaram ornamento comum embora o arminho fosse privilégio da realeza.

Margery conta que gostava de ostentar e se apresentar melhor do que as vizinhas e mulheres de sua classe. E se o marido lhe chamava a atenção, ela respondia de maneira curta e grossa, dizendo que era digna de tais ornamentos por ser filha de um prefeito da cidade X que tinha um cargo importante na rica Guilda da Trindade (no inicio do livro ela não menciona o nome de sua cidade, só bem mais adiante). E assim, ela viveu por décadas, querendo sempre se emendar, mudar seu comportamento, mas repetindo-o em ritmo constante.

Magery foi também cervejeira e não só em sua casa, como era costume para as mulheres da época. Ela ou trabalhou com o marido, ou por si mesma, e disto se orgulhou. Parece que o negócio não deu certo, então ela se ocupou de um moinho a cavalo, que, como o negócio anterior foi próspero no começo, mas também fracassou. A vida continuou assim até que certa noite, deitada na cama com o marido, escutou uma melodia tão doce e delicada que pensou estar no Paraíso. E teve certeza que seu coração e seu afeto se voltavam somente para Deus (352). Os conflitos e tensões do mundo de Margery fizeram com que ela gradual, porém voluntariamente, se afastasse de todos os privilégios mundanos e se desvencilhasse dos papeis e deveres femininos tradicionais, como lembra Statey, para seguir o que entendeu ser um chamado espiritual.

CANTUÁRIA, LINCOLN E LONDRES:

E “essa criatura foi enviada por nosso Senhor para diversos lugares de religião, e entre eles ela foi ter a um local de monges, onde foi bem vinda” a não ser por um deles, a quem conseguiu afinal convencer de suas santas intenções. Este foi o primeiro de vários embates que teria pela via a fora com autoridades masculinas. A partir dessa época ela começou uma longa e difícil negociação de seu contrato matrimonial, queria conseguir do marido a anuência para viverem castamente e das autoridades civis e religiosas a permissão para tal e a aprovação de suas visões. A negociação com o marido acabou por ter bons resultados quando ela recebeu algum dinheiro e pode antes de partir em suas viagens, pagar as dívidas dele.

Outra licença que precisava obter das autoridades eclesiásticas era a permissão para usar roupas brancas como Jesus lhe pedira. Ela negociou com Jesus, argumentou e adiou atender a este pedido o mais que pode, pois roupas daquela cor eram vestes de virgens e como ela era casada e mãe, poderia ser, como o foi, acusada de hipócrita e agressão às autoridades. Certo que Jesus lhe garantiu que era tão merecedora como qualquer virgem, mas isso não amenizava o trato com os humanos. Ela também precisou permissão para usar o manto e o anel, sinais de ter se casado com a castidade. Os empecilhos e obstáculos estavam por todo lado, mas com persistência e paciência ela conseguiu todas essas licenças.

O arcebispo da Cantuária, Thomas Arundel, lhe concedeu a permissão de receber semanalmente a comunhão, o que não era comum, e escolher seu confessor, privilégios especiais que seriam também desafiados inúmeras vezes no decorrer de suas caminhadas. O bispo de Lincoln, por seu lado, reconheceu que toda sua vida espiritual era inspirada pelo Espírito Santo. Nas igrejas, porém, ela soluçava tanto, dia e noite, que aborrecia a muitos, criando situações nas quais chegou a ser ameaçada de agressão física por pessoas incomodadas com suas barulhentas demonstrações de fé.

Escapando das perseguições “seguiu esta criatura para Londres, com seu marido, para Lambeth, onde o Arcebispo morava (1140)”. A notícia que Arundel havia apreciado sua pregação chegara até aquela cidade, então ali foi bem recebida e todos apreciaram seus soluços e gritos durante os cultos religiosos. Ninguém cogitou que o dom das lágrimas não lhe fora dado por Deus, que poderia vir do demônio. Ela prosseguiu no papel de autoridade pública e mulher santa, e como boa observadora de ambientes e caráteres, se tornou capaz de influenciar alguns eventos locais.

Norwich:

“À criatura foi ordenado e comandado que fosse até um Frade Branco na mesma cidade de Norwich, que era chamado William Soufield, um bom homem amantíssimo (1295)”. Este frade era um carmelita, morto em 1414, que diziam ter recebido visitações sobrenaturais nas quais a Virgem lhe aparecia. E nessa mesma cidade o senhor lhe disse para procurar uma anacoreta, Dama Juliana. E assim ela o fez.

Juliana de Norwich foi uma das maiores místicas inglesas e uma grande escritora. Não se conhece seu nome, ela como muitas outras anacoretas, ficou conhecida pelo nome da igreja na qual estava seu eremitério. Supõe-se que nascem em torno de 1342 e morreu talvez em 1428; a data de suas Revelations, no entanto, é conhecida com precisão, 1373. Anacoretas eram comuns na Idade Média e particularmente em Norwich, talvez devido a riqueza da cidade e o apoio que ali recebiam. Desempenhavam um papel espiritual mas também de conselheiros e rezadores para toda a comunidade, algumas vezes até mesmo funções práticas. Para poder se tornar anacoreta era preciso passar pelo escrutínio de bispos, superiores religiosos.

Juliana vivia numa cela de anacoreta – dois bons cômodos – com o auxílio de duas serventes quando ficou mais velha, junto a igreja de São Juliano na rua Conesford. A igreja era pequena e uma das mais humildes. E ela adquiriu renome e reconhecimento geral, sua fama se espalhou. As visitas eram restritas, mas sabemos, porque ela nos conta, que Margery a visitou, atestando o reconhecimento que lhe dispensava. Margery passou uns sete dias com Dame Juliana, como a chama, contando-lhe de suas visões buscando referendá-las como vindas do Senhor. E obteve a confirmação da boa fonte de suas visões, o que era da maior importância para ela.

Os escritos de Juliana brilham com extraordinários suavidade e amor. Para ela, como para muitos místicos medievais, Deus era mãe, assim como pai, o que desenvolvia a intimidade do pensamento. Embora ideia comum, a elaboração feita por Juliana dessa ideia parece como uma extensão da compreensão, “uma ampla reelaboração da Trindade e também uma celebração, talvez rara em sua época, do maravilhoso poder das mulheres carregarem a nova vida e trazê-la à luz. E de repente o feminino se tornou precioso e admirável (Furlog:1996:37)”. A teologia de Juliana era otimista em tempos sombrios e uma de suas frases se tornou um verso muito conhecido e repetido: “Tudo dará certo e tudo dará certo, e todo tipo de coisa dará certo”.

ECO

Uma rosa é uma rosa, é uma rosa, é uma rosa (Gertrud Stein, 1922)

COMENTÁRIO

É difícil não sorrir diante deste encontro tão improvável entre Margery, a buscadora de santidade entusiasta e muito viajada, e Juliana, a reclusa tranquila e quieta que preparava detalhadamente seu relato dos tratos de Deus com ela (Skinner:1997:ix).

Ou não sorrir diante da proposição menos otimista da artista moderna. A tripla repetição, sugerem, enfatiza o que se diz, provoca em ambos os casos ecos e evocações.

TERRA SANTA

A jornada até Jerusalém era uma a principal peregrinação para os cristãos. Os peregrinos recebiam indulgências especiais ao realizar a viagem que embora difícil estava já muito bem organizada, com postos de abastecimento, cobrança de inúmeros pedágios e taxas e livros guias que ofereciam informações sobre equipamentos necessários, câmbio e incluiam listas de palavras uteis em varias línguas como árabe, grego, turco, albanês. O percurso, por outro lado, tinha muitos perigos, piratas no Mediterrâneo; tempestades no mar que podiam levar o navio para praias inóspitas ou calmarias que poderiam causar fome e sede. A pé, a cavalo ou no navio, a rota era extenuante.

E pela rota dos peregrinos seguiu Margery, nas pegadas da revelação que recebera de Jesus anos antes. Estava com quarenta e poucos anos, e partiu no início do inverno de 1413-14 levando consigo uma criada. Receava os perigos, as tempestades no mar e particularmente ser estuprada ou roubada, mas antevia os lugares santos e prosseguia com energia. Despediu-se dos amigos, do marido e partiu vestida de peregrina, usando uma túnica longa com capuz, um chapéu de aba larga, levando papel moeda ou cartas bancárias como provisão, uma garrafa de agua e um bastão para ajudar nas travessias difíceis. Era preciso comprar com antecedência a passagem para cruzar o Mar do Norte rumo ao continente e ali se juntar a um grupo de peregrinos, continuar sozinha, impossível. Tendo tomado todas as providências necessárias, ela foi até o porto de Yarmouth e embarcou para Zierikzee, província de Zelândia, nos Países Baixos.

O grupo de peregrinos ao qual se juntou para atravessar a Zelândia e a Germania, seguindo o vale do Reno, logo se indispôs com ela, não suportavam sua pregação incessante, os soluços e as lágrimas. Além disso, ela era vegetariana e abstêmia, o que destoava dos outros. As mulheres medievais, confinadas e definidas por seus corpos, recorriam a austeridades, jejuns severos e outras práticas relativas a alimentos como forma de obterem controle sobre si mesmas e ao mesmo tempo renunciarem a seus corpos e a seu ambiente (Bynun:1987:5). Maria Madalena era uma santa ligada ao jejum devido a lenda que contava como ela sobrevivera em jejum durante muitos anos no deserto próximo à Marselha.

O monólogo de Margey, protestavam os companheiros, incomodava especialmente ao jantar, quando gostariam de conversar sobre outros assuntos. O lugar que uma pessoa ocupava a mesa variava conforme sua fortuna. Margery, uma companheira difícil, irritava os outros com suas devoções lacrimosas que eles a faziam sentar no final da mesa, depois de todos os outros. Mesmo assim, frades e outras pessoas que apareciam por onde passavam a apreciavam.

O mesmo não se passava com a pequena companhia de conterrâneos com a qual viajara, esta acabou por não aceitar que continuasse com eles. Ela não se amedrontou, entrou em uma igreja, orou por ajuda e logo um homem apareceu e aceitou guiá-la através dos Alpes, em troca de pagamento. Inúmeras vezes essa situação se repetiu durante o trajeto, ela retorna ao grupo de conterrâneos, eles não querem ficar com ela, sozinha ela reza e encontra alguém com quem seguir em frente. E a mesma coisa acontece com os que a apreciam, padres em boa posição, legados, monges e pessoas importantes surgem sempre por seu caminho, fazem amizade com ela, o que lhe valeu um bom nome e proteção.

Atravessar os Alpes não era fácil, era necessário uma fortitude e determinação extraordinária. Margery possuía sem duvida essas qualidades, atravessou as montanhas e com seu novo guia chegou à cidade de Constança onde se preparava o Concílio (1414-1418) que ali se realizaria com o objetivo principal de eleger um único papa, pois no momento a cristandade estava com três pontífices diferentes, nenhum tendo força para governar a igreja. Outros tópicos de discussão no Concilio deveriam interessar Margery, embora elas não os mencione. Um deles seria a condenação da heresia. John Hus, muito convidado a comparecer e se explicar acabou queimado na fogueira.

Hus fora influenciado pelo reformador inglês John Wycliffe (1320-1284), teólogo e professor de Oxford, que por um decreto do Concilio, em 1415, foi declarado herético, recomendando-se que todos os seus livros fossem queimados e seus restos mortais exumados e queimados, o que aconteceu doze anos depois por ordem do Papa. Wycliffe era tido como o maior dos lolardos, era da mesma região de Margery, traduzira a Biblia, pregava a pobreza na igreja e uma relação direta, sem intermediação dos sacerdotes, com o Senhor.

Os companheiros de Margery haviam cortado sua túnica muito curta, acima do joelho, e a obrigaram a usar um avental de tela branca como se fosse uma boba. Contudo, um importante legado papal inglês ficou muito bem impressionado com ela, e a favoreceu com palavras. Ela seguiu viagem só com o homem de Devonsheire e chegam a Bolonha antes do antigo grupo que muito se admira ao vê-los já acomodados quando enfim terminam a jornada. Ela se junta de novo ao grupo e seguem para Veneza, onde depois de pagar todas as taxas partiriam para a Terra Santa. Estavam viajando havia dois meses e passaram mais treze semanas ali à espera do galeão.

“E esta criatura recebia comunhão todos os domingos em um grande convento de freiras onde era acolhida com cordialidade e ali o misericordiosos Senhor Jesus Cristo visitou essa criatura com grande devoção e muitas lágrimas (2130)”. As freiras ficaram maravilhadas com ela; logo ela se separou do grupo e ficava em seu quarto praticando tantas austeridades que adoeceu, pensavam que vai morrer. Mas Jesus cura-a mais uma vez. E então os companheiros a incluem no grupo para o navio.

Os donos de navios em Veneza, licenciados pela republica, proviam um pacote completo para a viagem dos peregrinos. Este incluía uma cama com colchão de penas, uma coberta, dois travesseiros, dois lençóis e uma manta, assim como vários utensílios, remédios e laxantes, um baú com uma boa fechadura, até uma gaiola com meia dúzia de galinhas (Windeatt:2004:159).

No começo do século XIV Veneza já desfrutava grande prestígio e influência, era a cidade dos mercadores mais bem sucedidos seus múltiplos negócios o que lhe proporcionou posição única entre as cidades de toda Europa.

ECOS

A mais nobre cidade de Veneza, como todos sabem, está maravilhosamente situada nas margens mais distantes do Mar Adriático, e não só é a cidade fundada no mar, mas as muralhas que a cercam, a fortaleza que a guarda, e os portões que a fecham não são outra coisa que o mesmo oceano. O mar, dividido e canalizado em canais entre as casas, forma uma via pública conveniente, pela qual as pessoas são transportadas de um lugar para outro com a ajuda de barcos. […] e o mesmo mar é o mais diligente tributário e supridor de todas as necessidades para a nutrição e sustento de tão grande cidade. Porque Veneza, ela própria, nada […] e é só devido ao infindável trafico de navios que constantemente chegam vindos de todos os mares com provisões uteis, que ela se mantém abundantemente suprida com tudo que é preciso para a vida humana (Moderata Fonte, 1592).

Os escritores venezianos, como a humanista Moderata Fonte, sempre foram pródigos em elogios a sua cidade. Além das inúmeras igrejas havia profusão de relíquias valiosas que outro viajante comparou aos adereços das senhoras de Veneza que desfilavam pela grande praça central vestidas com sedas e brocados e ostentando fortunas em joias. A igreja de São Marcos, quando Margery lá esteve, recebia os mosaicos que lhe cobrem hoje as cúpulas e guardava um tesouro de inimagináveis proporções. As ilhas ao redor também eram interessantes, principalmente a de Murano que além da fabricação de vidros de luxo muito apreciados, guardava relíquias como uma mão de Santa Catarina de Siena, o braço de São Damião e restos de São Zacarias, pai de João Batista.

Finalmente embarcados os peregrinos seguiram pela rota costumeira que seguia a costa da Dalmácia, passava pelas ilhas gregas de Creta, Rodes e Chipre e seguia até Jaffa, com paradas frequentes para reabastecer. Os peregrinos ficavam juntos em uma cabine que era um compartimento em baixo do deque dos remos. Não havia escotilhas; a luz e o ar entravam somente pelo alçapão. O local para dormir consistia em um espaço no chão, grande o suficiente para conter um corpo deitado, dentro de marcas feitas com giz. Ali eram colocados lençóis, colchas e manta, a bagagem e dormia-se meio ao barulho dos remadores praguejando ou de conversas sem fim. O calor e o cheiro eram insuportáveis. Havia superlotação, moscas, ratos, piolhos e fraqueza geral dos viajantes que também precisavam se acautelar contra a violência dos tripulantes.

Os companheiros não compraram a passagem nem as provisões para Margery, não queriam ela por perto, então ela precisou fazer tudo sozinha, adquirir passagem, firmar o contrato com o capitão e arranjar todas as suas provisões. E ela os surpreendeu, não esperavam que conseguisse, mas ela ainda fez mais, pois estando em contemplação, Jesus ordenou que mudasse de navio! Eles se alegraram, haviam se livrado dela! Mas então começaram a temer, e se ela realmente tivesse alguma comunicação com a divindade e algo ruim acontecesse com o navio onde estavam? Mudaram-se todos para o outro barco, aquele onde Margey estava, independente da despesa extra.

O porto de Jaffa era controlado pelos muçulmanos que levavam os peregrinos, mediante o pagamento de taxas, por terra até Jerusalém. Margery, ao contrário dos companheiros não desgosta dos sarracenos. Ao entrar em Jerusalém, a ‘criatura’, que viera montada em um asno, agradeceu à deus de todo seu coração, e tão feliz ficou que viu abrir-se diante dela a Jerusalém celeste. Enxergou as muitas mansões do Senhor e as ruas pavimentadas de ouro e pedras preciosas e foi tanta sua felicidade que quase caiu do burrico.

Cantando um hino de louvor os peregrinos pisaram o lugar tão decantado por santos e leigos, viajantes e peregrinos. Margery teve outras visões e em uma delas Jesus garantiu-lhe que todos os seus pecados já haviam sido perdoados. Ao entrar na igreja do Santo Sepulcro ela recebeu o dom das lágrimas.

Visitou ainda Belém, a igreja da Natividade, a gruta onde a Virgem se abrigara para o nascimento de Jesus e outros lugares santos. Estabeleceu relações com franciscanos que a apreciavam muito e sentiram quando partiu, não de volta ao lar como desejava, mas na direção de Roma, como Jesus insistiu que seguisse. Os conterrâneos não queriam mesmo continuar com ela que acabou por encontrar um monge irlandês e o contratou para seguirem juntos.

ITÁLIA:

Por etapas chegaram a Assis onde ela, na igreja de São Francisco, “chorou, soluçou, gritou”. Entre os muitos peregrinos que estavam ali, encontrou uma protetora, uma rica dama que ia a Roma em busca de perdão. Margaret Florentine, assim se chamava ela, recebeu bem Margery e seguiram todos para Roma onde Margery e o monge se separaram do grupo e foram se hospedar no Hospital de São Tomas de Cantuária, quase na margem do Tibre, o albergue para peregrinos ingleses.

Roma em 1415 era uma cidade medieval decadente, sem papa, pois João XXIII estava no Concilio de Constança esperando ser legitimado seu reinado. A turbulência política retardara as mudanças econômicas e artísticas que já aconteciam em outras cidades italianas. Roma era pequena, um quinto do tamanho da cidade antiga, e decadente, tinha cerca de dezessete mil habitantes, as ruas eram estreitas e serpentinas e muitas pessoas moravam em choupanas espalhadas sem ordenação nenhuma pelas antigas ruinas. No final do século XV começara uma renovação da cidade nos moldes do Renascimento.

Mas havia muitas igrejas, as Estações de Roma, como era conhecido o circuito, somava quarenta e uma delas. Kempe cita San Pietro, São João Latrão e Santa Maria Maggiori (1849-58). Não menciona ter visitado o Vaticano, a basílica, como a conhecemos, ainda não existia. As descrições que faz dos lugares que visitou são breves, pois não está fazendo um guia turístico e sim um diário espiritual. A narrativa em terceira pessoa se concentra em ações, experiências, visões. Ela finalmente assume o uso das roupas brancas, acaba expulsa do Hospital inglês, não tem com quem confessar então Jesus lhe envia S. João Evangelista par ouvir sua confissão e lhe assegura que nunca irá abandoná-la.

Na igreja de São João Latrão ela encontra um frade alemão que não entendia inglês, ela não falava alemão, mas depois alguns dias rezando juntos eles conseguem se entender e realizar a confissão. Falar ou entender outras línguas que não se conhece representa uma experiência espiritual na qual o sujeito é um canal para uma força externa manifesta em uma linguagem inacessível a outros. Esse fenômeno é denominado glossolalia, um paradoxo, pois uma inteligibilidade miraculosa de uma não inteligibilidade. Margery também conversa com um tordo, e outros animais, entende o que lhe dizem.

O frade alemão passou a apoiá-la com vigor até aparecer um padre que fazia parte do grupo dos antigos companheiros, sempre seus piores inimigos, e convence-lo a exigir que Margery dispensasse as roupas brancas.

Sem se deixar abater, ela vai até a igreja dos Apóstolos onde se casa misticamente com a divindade meio a suaves odores, melodias harmoniosas e fogo. Jesus a trata como marido e a aconselha a jejuar garantindo, por outro lado, que está salva por toda a eternidade. Ela retoma as roupas brancas e distribuiu todo seu dinheiro. Jesus promete ajuda.

Margery caminha pela cidade, encontra pessoas que haviam conhecido Santa Brígida da Suécia, a quem muito admirava e cujo modelo seguia, e visitou o quarto onde ela falecera. Um padre inglês chega a Roma e vai ajudá-la. Ali seus soluços surpreendiam, mas eram tolerados e até mesmo apreciados. Fica nessa cidade até a Páscoa e então retoma o caminho de volta, para a Inglaterra e para Norwick antes de chegar em casa, em Lynn, pobre, enferma e morta de frio, dezoito meses depois de haver partido. É maltratada pelos vizinhos porque se vestia de brancos, soluçava e gritava. Assim que se recupera é inspirada a fazer outra jornada.

SANTIAGO DE COMPOSTELA

O caminho percorrido por peregrinos desde o século IX era uma antiga estrada romana chamada Via Láctea porque seguia a nebulosa pela Galícia até o oceano Atlântico. O auge de visitantes se deu durante os séculos XII e XIII quando com Roma e Jerusalém formava o conjunto dos principais locais de peregrinação para a cristandade. Um dos primeiros guias para os peregrinos foi o do monge Aimeri Picard que em 1130 mostrava as quatro rotas e as etapas até a catedral estilo romanesca, na Galícia espanhola. Havia hospedarias – hospitais e hospícios – dos cistercienses e dos beneditinos ao longo dos percursos para atender as necessidades dos viajantes o que somado à venda de lembranças era um negócio muito lucrativo. A paisagem e o percurso não eram muito diferentes dos seguidos pelos caminhantes dos últimos dois séculos.

O Caminho inglês foi percorrido pela primeira vez em 1092, era o percurso mais fácil e mais curto. Viajantes vinham por mar até Ferrol ou A Corunã, há uns cento e dez quilômetros de Santiago. Da primeira localidade levava-se cinco dias, da segunda somente três. A peregrinação coeçava quando o viajante saia de sua casa. Margery saiu de Lynn, foi até Bristol para tomar o navio. Havia certa dificuldade em encontrar lugar nas embarcações porque elas haviam sido requisitadas por Henrique V que enviava seu exército daquele local para uma segunda expedição na França, em maio e junho de 1417.

Margery ficou na hospedaria dos peregrinos e precisou esperar seis semanas até conseguir embarcar. Todos os que esperavam se impacientavam, alguns, conta ela, iam de um porto a outro seguindo rumores que se mostravam infundados e no fim voltavam à Bristol. Margery percorria a cidade, estava excitada, soluçava alto nas igrejas, chorava e o que parecia santo a alguns, assustava outros. Mais uma vez foi chamada de ‘hipócrita’ e surgiram falsas acusações, principalmente de estar ligada aos lolardos. E foi como lolarda que foi denunciada por inimigos e levada à presença do Bispo de Worcester, próximo a Bristol. O navio estava pronto para partir, ela não queria perde-lo, mas precisou se apresentar e responder a inquisições sobre sua fé. A sala para a qual foi levada estava cheia de bispos e sacerdotes, houve conflito de opiniões sobre ela, mas afinal o bispo declara que conhecera seu pai e que o caso dela deveria ser encerrado.

Um vento leve soprou e ela partiu rumo a Santiago, conversando com Jesus em sua alma, implorando “ser poupada até sua volta para a Inglaterra – Inglong”. A viagem foi tranquila, levou sete dias. Ela ficou “xiiij [14] dias ‘naquela terra’, divertindo-se bastante” à sua maneira e a jornada de volta foi feita por mar em cinco dias até Bristol. Ao todo esteve fora vinte e seis dias durante os quais pudera pregar à vontade e contemplar a bela catedral em estilo romanesco frente a qual se abre a enorme praça sempre lotada de peregrinos.

Ecos, escuto Sophia de Mello Breynen (1989) ”Santiago de Compostela”,

Assim pudesse o poema

Como a pedra esculpida

Do pórtico antigo

Ter em si própria a mesma

Compacta alegria

Cereal claridade

Ante o voo da ave

Do espírito que ergue

Os pilares da nave

LEICESTER E YORK

Na volta Margery pretende visitar os santos locais e as relíquias da Inglaterra. Mais uma vez, surgem inúmeras dificuldades. Sua figura provocava desconfiança e logo ela é presa e levada a uma autoridade ou outra para ser inquirida sobre a doutrina e ser examinada. O relato nesse ponto enfoca sua viagem pelos meandros do poder, de perseguições que lhe faziam as autoridades masculinas poderosas, laicas ou eclesiásticas e sua autodefesa engenhosa. Depois de visitar a Abadia de Hailes, em Gloucestershore, onde havia uma garrafa com o sangue de Cristo, ela se dirige a Leicester onde seu fervor incomoda a algumas pessoas que a denunciam como rebelde, como era dever de cidadãos responsáveis. É conduzida a presença do prefeito que manda prende-la, ao que ela suplica “rogo a vós, senhor, não me coloqueis entre homens, para que eu possa manter minha castidade e continuar fiel a meu marido (3687)”.

A acusação, mais uma vez, é de comportamento impróprio visto estar vestida de branco sem ser uma virgem. Windeatt nota que provavelmente o prefeito interpretou as vestes brancas como uma forma de desafio a autoridade masculina, do mesmo modo que em outra ocasião (4475-8) ela foi acusada de aconselhar uma esposa nobre a deixar o marido. Outra acusação recorrente era de ser uma lolarda. Leicester era um dos bastiões dessa rebeldia persistente e o centro de produção de livros de hereges (Windeatt:2004:229). Surge alguém que informa que em sua cidade ela é tida como ‘mulher santa’ e outro se oferece para guardá-la em sua casa ao invés de deixarem-na no cárcere.

Mais tarde ela é levada a corte do conde de Leicester e responde com acerto e argúcia às questões que lhe são colocadas, e foram muitas e precisou contar em detalhes as visões, sendo ameaçada de estrupo se não o fizesse. A eloquência de Margery impressionou a todos e então eles a levaram ao Prior de Leicester. O caso se tornara célebre e todos acreditavam que estava em contato com o sobrenatural, mas era com deus ou com o demônio? Mais uma vez ela responde muito bem e é liberada. Margery conta que recebera instruções divinas sobre como se comportar com essas autoridades, a quem contar suas revelações e nessas veredas do poder ela aprendeu a ter cautela e não divulgar o que pensava para qualquer um.

No início de agosto de 1417, depois de umas três semanas de detenção, segue para York agora com cartas de recomendação do Prior de Leicester. Isso, no entanto, não lhe foi de muita valia, pois mais uma vez é acusada de heresia. Compareceu perante o Duque de York. E, mais uma vez se defendeu de maneira hábil e adequada.

A constante perseguição fez com que nesses anos Margery e John se mudassem para outros sítios. Ele a acompanhava, mas nem sempre, quando perigos de agressão se concretizavam ele desaparecia, deixando-a sozinha. Mas aconteceu que na cidade de Lynn ocorreu um grande incêndio em 1421, e o povo ameaçado, os sacerdotes e outras figuras, queriam culpar Margery. Aventaram a possibilidade de uma prova de boa fé: se ela conseguisse deter o fogaréu, não seria considerada servidora do maligno. Dias depois uma tempestade apagou o fogo e a partir de então os Kempe tiveram paz em sua comunidade.

Um intervalo de oito anos, durante os quais sofreu uma série de diferentes enfermidades, segue-se em O livro. A carta do Arcebispo lhe garantiu aceitação, embora nem todos a apreciassem e várias das antigas rusgas continuassem ocorrendo entre vizinhos. Margery se via excluída de paróquias locais por padres que se irritavam com seus gritos e soluços. O conflito com os sacerdotes, com as autoridades masculinas continuaram, embora o número de defensores também aumentasse, incluindo-se entre estes últimos o clérigo que iria ajudá-la com o livro.

O movimento dos últimos capítulos é em direção à compaixão; ela fala do desejo de beijar leprosos e de ajudar as mulheres que sofriam, como ela sofrera, de depressão pós-parto. Ela também adota um papel mais compreensivo como cuidadora da família e dos que estão em seu entorno o que transforma suas relações espirituais, familiares e sociais. Faz eco das meditações da Paixão ou lembra cenas dos dramas teatrais medievais que narravam a Paixão e se imagina incluída nas cenas, cuidando de Maria de Nazaré depois do sepultamento de Jesus e de Maria Madalena depois da Ressurreição.

DANZIG E O NORTE DA EUROPA

Livro 2 é curto e foi escrito pela mesma pessoa em 1438. O que relata é a conversão de um filho de Margery, graças à suas preces que o fazem desistir de uma vida dissoluta. Esse filho que morava onde hoje é a Polônia foi visitá-la com a esposa e morreu, assim como John pai havia morrido recentemente. Aqui, pela segunda vez, Martery menciona um de seus filhos, a primeira tendo sido logo nas primeiras linhas quando fala sobre seu primeiro parto. Newman chama a atenção para o lugar privilegiado que ocupam essas duas menções, a primeira ocorrência marca o inicio dos sofrimentos de Margery, com esse encontro com um filho adulto ela mede a distância que caminhou desde o primeiro episódio – “de louca torturada a santa confiante ao relatar a estória do filho pródigo (Newman:1995:92)”.

Margery decide, contra a vontade da nora que se opõe a empreitada, acompanhar a nora até sua casa em Danzig. Embarcam em Ipswich, via Norwich e Walsingham onde havia um santuário da Virgem que ainda não conheciam. Obstáculos surgem no caminho de Martery na pessoa de um jovem sacerdote. Sua firmeza, no entanto, faz com que supere os empecilhos e embarque no navio que partiu na semana da Páscoa de 1433.

E logo a embarcação foi assolada por intensa tormenta. Margery rezou com fervor, indagou ao Senhor o por quê daquele transtorno e ele lhe respondeu, ‘por que você está com tanto medo?’ lembra a ela que estará bem no mar ou em terra firme e lhe dirige palavras ‘de grande conforto’. Logo depois avistam a costa da Noruega e conseguem entrar nas águas calmas dos fiordes.

ECO

Na Noruega há um fiorde – um braço de mar longo e estreito entre altas montanhas – chamado Fiorde Berlevaag. Aos pés das montanhas uma pequena cidade […] se parece com uma cidade brinquedo de crianças construída com pequenos blocos de madeira pintados de cinza, amarelo, rosa e muitas outras cores (Dinesen: 1958).

Os viajantes atracam em uma pequena cidade, mas continuam a bordo durante o final de semana, só desembarcando para o serviço do domingo de Páscoa na igreja local. No dia seguinte um vento suave soprou permitindo que continuassem a viagem, o capitão grato à Margery pela interferência salvadora de suas preces.

Em Danzig ficou ‘umas cinco ou seis semanas’, fez alguns amigos meio ao grupo de ingleses que ali morava e do qual seu filho fizera parte e comerciava bacalhau. No momento de iniciar a jornada de volta Margery resolve não querer ir de barco, estava decidida a não mais enfrentar ‘os perigos do mar’; o caminho por terra, porém, era perigoso, pois o rei da Polônia travava uma guerra, apoiado por hereges da Boemia, aos cavaleiros Teutônicos; outra dificuldade é que não tinha nenhuma companhia com a qual seguir.

Ela recorreu à oração e acabou por encontrar um homem que a soldo se dispôs a acompanhá-la e incorporá-la a um grupo de outras pessoas. O roteiro começaria por mar, acompanhando a costa até a Pomerania, para evitar as forças em guerra. Mas, por ser inglesa, e porque o rei da Inglaterra cobrava impostos da Liga Hanseática que esta considerava extorsivos, não deixaram que ela embarcasse. Afinal, um mercador de Lynn que morava em Danzig conseguiu colocá-la a bordo e partiram.

Sralsund à margem do Báltico era também cidade membro da Liga e fazia parte do Ducado da Pomerânia. Margery feliz por estar novamente em terra, seguiu em frente com seu acompanhante, solicitou-lhe inúmeras vezes que caminhasse mais devagar, pois acompanhar seus passos era difícil para ela que já estava velha. Mas o homem se recusava a atender seu pedido alegando que havia muitos assaltantes na floresta. Ninguém ousaria tocá-la, ela insistia, porque Deus a protegia.

O homem não se compadecia e continuava veloz, ‘ele não tinha compaixão por ela’, permanecendo surdo às suas súplicas. Os dias se passavam e ela ia ficando sem forças até que chegaram a uma hospedaria miserável, que não possuía nem camas; ela não conseguiu prosseguir no dia seguinte. Ele tenta abandoná-la, mas as pessoas da vila, escandalizadas com o tratamento que ele dispensava à peregrina, mesmo não entendendo sua língua, pressionaram-no tanto que o acompanhante se viu obrigado a permanecer com ela.

Chegaram em Wilsnak, uma cidade entre Berlim e Hamburgo, na Germânia, que fora queimada um século antes e na qual logo depois, em 1383, foram encontradas algumas hóstias ensanguentadas. O Sangue Sagrado de Wilsnak fora abençoado pelo Bispo e o local se tornara centro de peregrinações.

ECO

“Todos os meus dias eu anseio igualmente por viajar pela Estrada correta e tomar meu próprio caminho de errância (Sigrid Undset: 1922)”.

Margery e seu acompanhante depois de apreciar a relíquia famosa prosseguiram rumo a Aachen. A jornada não foi calma, Margery brigava com monges que encontra pelo caminho, a muito custo impediu o guia de abandoná-la numa estrada deserta. Quando atingiram uma vila ele foi embora, mas como em tantas outras ocasiões ela conseguiu se juntar a um bando de peregrinos, desta feita, extremamente pobres e esfarrapados. Eles esmolavam comida e abrigo o que os fazia perder tempo e ela, porque ainda tinha dinheiro, pagava em dobro pelo qualquer coisa que precisasse. Ao chegar a Aachen ela se separa dos peregrinos.

A cidade que fica no norte do rio Reno, na Westefália, foi capital de inverno de Carlos Magno e esse rei iniciou a construção da famosa catedral católica onde foi enterrado em 814. A construção que abriga incalculáveis tesouros é conhecida como a Catedral Imperial porque ali, entre 936 e 1531 foram coroados os reis germânicos. As peregrinações datam de séculos sendo que a cada sete anos quando são exibidas as quatro relíquias mais preciosas: o manto de Santa Maria, os cueiros de Jesus, a roupa com a qual João Batista foi decapitado e o tecido que cobriu Jesus na cruz. Os estudiosos acreditam que a estadia de Margery Kempe tenha coincidido com um dos momentos em que essas relíquias foram exibidas. A última grande peregrinação para essa exposição foi a de 2007.

No século XV, Margery tem de novo dificuldades para encontrar companhia para chegar até Calais onde embarcaria para casa. Encontrou afinal dois peregrinos ingleses que voltavam de Roma e seguiu com eles; depois de percalços costumeiros chegaram em paz aquele porto. Os companheiros se esqueceram de comprar passagem para ela e, invocada, a providência mais uma vez vem em seu socorro; ela embarca. A travessia foi dura, o mar estava agitado, e ela rezou para não enjoar diante daquelas pessoas que não lhe eram simpáticas, e seu ‘desejo se realizou’: enquanto todos passavam mal e vomitavam, ela não se sentiu afetada.

Chegando a Dover, Inglaterra, os peregrinos se dispersam. Margery segue sozinha por uma estrada, quer ir para Canterbury, embora “ela não soubesse o caminho”. “Dali ela foi para Londres”, mal vestida, em andrajos e suja, queria passar despercebida até conseguir algum dinheiro com amigos e comprar uma roupa descente, mas ao entrar na cidade algumas pessoas a reconheceram como “Mar. Kempe de Lynne (8186)”. Após tantas caminhadas, por tão tortuosas e longas estradas, afinal ‘essa criatura’ se vê reconhecida na autoridade de sua experiência, ela, Margery Kempe, da cidade de Lynne.

Em Londres hospeda-se na casa de amigos por algumas semanas, de lá faz uma visita ao santuário cartuxo, fundado em Shen por Henrique V em 1415 que com o santuário da ordem de Santa Brígida em Mount Syon formavam o grande centro de piedade contemplativa na Inglaterra do século XV (Windeatt:2004:418). A festa pela libertação de São Pedro (1º de agosto) era o principal dia de perdão e os peregrinos recebiam muitas indulgências. E ali ela reencontra um antigo guia que se dispõe a acompanha-la até Lynn.

Ao longo de suas viagens, apesar das dificuldades, da má vontade dos peregrinos, do cansaço, dos perigos, Margery demonstrou disposição de corpo e de espírito invejáveis. Em suas errâncias reelaborou o topos medieval do perder-se através do modelo das Marias, a Madalena, a da Betânia e a de Nazaré; ou de Santa Brígida da Suécia ou Catarina de Siena; tomou uma via excêntrica com indícios de desnorteio e que só se descobre durante a viagem. E “quando ela voltou para casa em Lynn, humildemente procurou seu confessor” e narrou tudo que se passara. E com uma longa prece, se encerra o O Livro de Margery Kempe.

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Nota: publicado na revista eletrônica Labrys 19 (2011) – www.labrys.net

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