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As mulheres loucas da literatura

Norma Telles

Sonhos e iluminações das mulheres loucas da literatura

O discurso sobre a “natureza feminina”, que se formula no século XVIII e se impõe à sociedade burguesa em ascensão, define a mulher, quando maternal e delicada, como a força do bem. O anjo do lar. Mas, ela é também potência do mal quando sai da esfera privada ou usurpa atividades que não lhe são culturalmente atribuídas. Torna-se então um monstro: bruxa, malvada ou decaída. Anjo ou monstro, este discurso que naturaliza o feminino coloca-o além ou aquém, mas sempre fora da cultura. A tradição estética, por sua vez, define a criação artística como um dom essencialmente masculino. Tal qual Deus Pais, Que criou o mundo e o nomeou, o artista é progenitor e procriador de seu texto, um patriarca estético. “A virtude da mulher é a maior invenção do homem” é uma sentença ambígua de Balzac que ecoa na síntese estética de Norman Brown exposta em “Daphne”: “Poesia, o ato criativo, o ato da vida, o arquétipo do ato sexual. Sexualidade é poesia. A dama é nossa criação […] A dama é o poema…(apud Campbell:1970)”

A mulher é negada a autonomia – a subjetividade – que a criação representa. É-lhe atribuída somente a procriação. Ela está simbolicamente excluída da cultura e torna-se encarnação dos extremos da alteridade, aquele misterioso e intransigente Outro confrontado com veneração e medo, com amor ou ódio. Demônio ou fantasma, anjo ou fada, ela é mediadora entre o artista e o desconhecido instruindo-o em degradação ou exalando pureza. Ela e musa ou criatura não criadora.

Foi durante esse mesmo período, no entanto, que as mulheres, em grande número, não só escreveram como publicaram livros, tanto na Europa quanto nas Américas. Seus livros não diferem profundamente dos escritos por homens; em geral ambos enfrentam questões semelhantes: relações humanas, identidade, relação indivíduo-sociedade. Mas, exatamente pela posição diferenciada que ocupam na sociedade e em suas representações, pela interdição a certas áreas da linguagem, à educação superior, à mobilidade e independência econômica, até o século vinte, é que se pode detectar peculiaridades comuns aos seus modos de enxergar o mundo a despeito das diferenças entre elas.

As semelhanças que estudiosas contemporâneas, como Ellen Moers e Elaine Showalter, encontraram na literatura escrita por mulheres nos últimos séculos só podem ser explicadas através de um impulso comum de se livrar do confinamento social e literário, através de estratégias para redefinir a si mesmas como ser, para pensar a arte e a sociedade. Apesar das diferenças de idéias, estilos e épocas, esses tragos são suficientes para definir o que foi denominada uma cultura feminina, uma tradição literária que se desenvolveu em relação à tradição dominante com tensões que ameaçam os equilíbrios simbólicos e com contrastes e compromissos.

Os traços comuns, portanto, não se devem a algo inato ou genético. Nem são resultados de acaso ou arcaísmos. Devem-se as dificuldades de auto-definição decorrentes da socialização e que geram uma incontrolável “ansiedade de autoria”. Educadas como meninas, para papeis domésticos específicos, com condutas amorosas limitadas porem enaltecidas, terão, antes de mais nada, de rever esses ditames. A mente, diria Simone de Beauvoir, não tem sexo, mas aprende seu sexo. Por todas essas dificuldades para a revisão da socialização é que Showalter acredita que, como novelistas ou literatas, as mulheres constantemente conseguem ser conscientes, mas só raramente conseguem uma auto-definição, permanecendo aberta ate hoje a questão da identidade feminina.

Como foram constantemente definidas por autores homens as escritoras parecem, em reação, ter achado necessário encenar metáforas masculinas em seus textos, como se estivessem tentando entender as suas implicações. Por razoes históricas facilmente discerníveis, as diferenças entre as preocupações e os papeis sociais prescritos constituíram, até o século vinte, uma marca nos livros femininos.

 

Os homens, afirma Julia Lopes de Almeida, em Eles e Elas, “teceram a sociedade com malhas de dois tamanhos ¬grandes para eles, para que os seus pecados e faltas saiam e entre sem deixar sinais: e extremamente miudinhas para nós […] E o pitoresco é que nós mesmas nos convencemos disto!” A ironia da autora aponta para o fato do maior obstáculo para o avanço da mulher por terrenos proibidos estar na internalização dos padrões culturais. A poeta e jornalista Narcisa Amalia, em 1889, definiu com lucidez a questão sobre mulher e arte : “A pena obedece ao cérebro, mas o cérebro submete-se antes ao poderoso influxo do coração, como há de a mulher revelar-se artista se os preconceitos sociais exigem que o seu coração cedo perca a probidade, habituando-se ao balbucio de insignificantes frases convencionais?” Vitimada pela oposição e opressão que suscitou é ela própria colhida por “nevrose cardíaca” que a enfraquece para as lutas da inteligência, afirma, e acaba morrendo, já adentrado o século vinte, esquecida, cega e paralítica (Telles:1987).

A coerência de temas e imagens encontradas nos livros de escritoras geográfica, histórica e psicologicamente distante decorre, portanto, de sua inserção na sociedade ocidental do período. A escritora vivenciava, além da impressão de estar negando seu gênero, uma ansiedade decorrente do terror de não poder criar ou de que o ato de criação poderia isolá-la, até mesmo destruí-la. Esta ansiedade, este pânico, nem sempre consciente, alem de debilitante, foi germe de distúrbios, doenças e desconfianças que surgem nos textos, algumas vezes nas entrelinhas, e nos estilos. No século XIX, as escritoras, em geral, lutavam sozinhas e este isolamento era sentido como enfermidade, alienação e loucura.

Alguns temas constantes aparecem na obra de escritoras: a preocupação com a definição de espaços, paisagens gélidas ou interiores quentes; metáforas de aprisionamento e escape; metáforas de desconforto físico e a recorrente obsessão, ficcional ou real, com doenças como anorexia, agorafobia, claustrofobia, “doenças dos olhos” e paralisia. Todo o mal-estar decorrente da revisão da socialização e da ansiedade de autoria foi sintetizado por Sandra Gilbert e Susan Gubar (1979) na metáfora da “louca no sótão” que consideraram o elemento predominante na literatura feminina do século XIX.

A metáfora da “louca do sótão” refere-se ao aberrante duplo do anjo do lar que vivia na sala de visitas da ficção. Ela foi empregada por muitas autoras, tanto na prosa quanto na poesia lírica, tanto em contos góticos, como em novelas neo-góticas. A metáfora implica que a arte das mulheres contém um traço escondido e persistente, de incontrolável loucura, decorrente da ansiedade, da desobediência às regras sociais definidoras da mulher e dúvidas da possibilidade de ser criadora. Ao livrar-se do modelo de como deveria ser, ao tomar da pena e escrever, a mulher consciente ou inconscientemente rejeitava valores sociais. Por isso, mesmo não criticando abertamente a sociedade, e em geral no século XIX não o faziam, as escritoras contestavam os padrões da sociedade que gerara o paradigma. As escritoras criaram, sem cessar, personagens, o mais das vezes secundários, que encenaram sua ansiedade e raiva reprimidas e encobertas. Elas projetaram os impulsos subversivos que sentiam e a energia de seu desespero em personagens grotescos, deformados, paralíticos, apaixonantes ou melodramáticos.

Era como se o próprio ato de escrever fizesse surgir a figura da louca. Como em um sonho mau, uma mulher ensandecida e enraivecida rompia o silêncio com o qual nem ela nem sua autora podiam mais continuar concordando. Muitas vezes a escritora podia falar por si própria ao narrar como havia surgido por detrás da mascara plácida.

É o que ocorre em Ursula (1859), de Maria Firmina dos Reis, considerado o primeiro romance brasileiro escrito por uma mulher. Esquecida durante anos, esta escritora, que foi professora em Guimarães, no Estado do Maranhão, teve sua obra – poesias, canções, artigos pesquisados por Nascimento Morais Filho, e seu romance recuperado numa edição fac-similar em 1975 e uma re-edição em 1988. Em outro trabalho ressaltei a importância do tratamento que se dá à questão do escravo, individualizando-o em dois personagens, narrando suas histórias de vida, seu passado na África que descreve, onde viviam sob um código de valores diferenciado da sociedade colonial e escravocrata brasileira. Ela torna esses personagens agentes de ações fundamentais para o andamento da história. Tudo isso é peculiar e bastante diferenciado no contexto geral da literatura abolicionista brasileira e é precoce, pois este tema só se firma, na literatura como um todo, por volta dos anos 70 do século dezenove. Aqui, quero tratar da personagem principal em relação à metáfora da louca que esbocei acima. O livro de Maria Firmina dos Reis, apesar dos ingredientes românticos, parece-me enquadrar-se na tradição que Moers denominou gótico feminino e que derivou das novelas de Ann Radcliff, no século XVIII. Não parece que Maria Firmina conheça esta autora, no entanto, os principais ingredientes góticos estão presentes em seu romance, inclusive na ingenuidade das descrições de paisagens.

Ursula, a donzela, não está presa em um castelo, mas junto á cama da mãe paralítica numa fazenda arruinada que pertence ao vilão, seu tio. Ambas são vitimas desse senhor de terras e escravos muito cruel que amava a irmã e, inconformado com seu casamento com outro homem (também mau), mata-o, compra a divida do casal e assim aprisiona a bem-amada irmã que o traiu ao casar-se e também a sobrinha. As aventuras de Ursula não são por labirintos escuros ou por terras desconhecidas mas através da floresta onde tem que enfrentar o vilão que transferiu seu amor incestuoso da irmã para a sobrinha. Ele passa a perseguir a rapariga, incansavelmente.

Um belo dia, um jovem bacharel, de São Paulo, passando pela região quase morre em um acidente. É socorrido por Túlio, um escravo a quem concede a liberdade e de quem se torna amigo. Este o conduz até a donzela e os jovens, em meio aos delírios causados pela enfermidade, se apaixonam. Porém, o vilão não desiste e os persegue, e conquanto não obtenha sucesso, frustrado e contrariado pela rejeição, tortura os escravos. As câmaras de horror são substituídas no livro pelas senzalas e a falta de liberdade, pela viagem no navio negreiro e pelo impacto da visão da chegada. “Gelei de horror ao aspecto de meus irmãos”, relata a negra Susana que conhecera a liberdade e a vida na África e que acabará morrendo em uma prisão quente e úmida, entregue aos vermes, à fome e ao desespero. Todos morrem pelas mãos do vilão: o bacharel e noivo da donzela, Túlio, o escravo liberto, a mãe de Ursula. Esta enlouquece e em sua loucura consegue vingar-se, pois amaldiçoa o vilão, seu irmão, e consegue vê-lo rastejando, corroído por remorsos antes de fechar os olhos para sempre. O vilão também enlouquece alguns anos depois, não antes de ter sido absolvido por um frade. Assim, a loucura junta num mesmo patamar o homem poderoso e a jovem mais indefesa, cada qual por um motivo diferente extraído de sua identidade programada socialmente e perdidos em percursos que não conduzem a novos lugares.

No livro o senhor de terras e escravos é o vilão cruel, incestuoso e assassino; os maridos são os “tiranos da esposa” e as esposas, boas e mais humanas, são totalmente impotentes, só fazem chorar, são “paralíticas” como a mãe de Ursula, não conseguem interferir na ordem das coisas. Todos morrem e não parece haver outra solução possível para o mundo pintado por Reis, onde o elo afetivo mais forte é constituído pela relação mãe-filha e este elo juntamente com a nobreza dos sentimentos dos escravos e a falta de poder feminino são as únicas coisas boas num cenário amaldiçoado pela agressividade, obsessão e despotismo masculino.

Ursula é, durante a maior parte da história, uma figura apagada. Dócil, obediente, dedicada à mãe, não consegue, em suas perambulações pela floresta, formular para si mesma seus sentimentos ou ideais; chega mesmo a pensar que a sorte do liberto é melhor do que a sua quando Túlio parte em viagem em companhia de seu noivo e se identifica com ele em outras ocasiões. No prefácio a autora, desculpando-se pela simplicidade de seu livro, gerado, escreve, pela imaginação de uma mulher brasileira, “de educação acanhada e sem o trato e a conversação dos homens ilustrados”, compara-o a donzela que, diz, não é formosa, mas que move o interesse e nos obriga a olhá-la com bondade. “Deixai pois que minha Ursula, tímida e acanhada, sem dotes da natureza, nem enfeites e louçanias d’arte, caminhe entre vós”. E Ursula caminha entre nós presa à ausência de uma história própria, portando máscara plácida que lhe cobre o rosto. Quando a máscara cai, a face retorcida pela loucura, embora continue mostrando um sorriso “débil e vaporoso”, tornara-se o suficiente para falar, amaldiçoar e vencer o vilão. Pois, de “todas as vítimas do amor”, Ursula é o único nome que permanece na lembrança, diz a autora ao final, pois teve o nome gravado na lápide da sepultura. Isto é, a louca encontra sua fala e desenrola sua história que assim se torna digna de lembrança. Por que a tímida e acanhada donzela permanece?

Porque talvez da perspectiva da escritora a mulher que rejeita o silêncio imposto da domesticidade, não seja um objeto tão terrível como se pensava então. A louca seria para Reis, como para tantas outras escritoras, uma tentativa de auto-articulação, de apresentação dessa figura enraivecida e destruidora de dentro para fora e de uma maneira nova. A associação entre mulher criativa e monstro é recorrente na cultura ocidental moderna. Ao projetar sua angustia e mal-estar de autoria na figura da louca, o lado obscuro da donzela que traz à tona, Maria Firmina dos Reis – como várias outras escritoras – esteja tanto se identificando quanto revisando a definição que a cultura lhe impôs.

Em outro conto, de 1887, intitulado A Escrava, Maria Firmina dos Reis trata a situação de outra perspectiva. O elemento gótico esta também presente e foi assinalado por Morais Filho. No conto, uma escrava finge-se de louca para escapar ao cativeiro. Muito doente, é socorrida por uma mulher que a esconde plenamente cônscia dos perigos que esta ação envolve. A escrava¬ louca narra sua história antes de morrer e então se despede do filho que também fugira para procurá-la e encontra a mãe antes do desenlace final. A mulher que os acolheu aciona os labirintos subterrâneos da liberdade e compra a liberdade para o escravo que sobreviveu. Enfrenta então o feitor e o senhor dono dele,triunfa pela coragem, astúcia e presteza na ação. Essa personagem que poderia tem uma história própria, que pensa, escolhe o caminho a percorrer, age sozinha, possui uma rede de contatos e obtém bons resultados no que empreende, no entanto, não recebe um nome, permanece misteriosa.

A metáfora da “louca no sótão” significa que na literatura feminina a louca não é meramente, como poderia ser na literatura masculina, um desafio ou uma antagonista da heroína. Bem ao contrario, em geral é, em algum sentido, o duplo da autora, uma imagem de sua própria ansiedade e raiva. A figura é evocada para que a escritora possa chegar a bons termos com sua própria fragmentação, com a estranha sensação de não ser bem aquilo que deveria ser. Ela é também a dramatização da cisão da autora entre o desejo de ser aceita por uma sociedade que ela, querendo ou não, está contestando ou desafiando.

Gilbert e Gubar mostram que esta metáfora é tão persistente e tão importante que a esquizofrenia de autoria (conformidade com/subversção do padrão) liga as autoras de séculos passados às do século XX. Liga, por exemplo, Charlotte ou Emily Brontë à Virginia Woolf (que tanto se projeta na Sra. Dolloway quanto no louco Septimus Warren Smith) ou Doris Lessing com suas personagens, a sã Martha Hesse e a louca Lynda Coldridge. Liga Maria Firmina dos Reis a Lya Luft (as gerações de mulheres loucas de Reuniao de Familia). Liga escritoras de várias épocas e nacionalidades como, por exemplo, Mary Wollstonescraft e Maura Lopes Cançado.

“Moradias de horror tem sido descritas, assim como castelos, cheios de espectros e quimeras, invocados por formulas mágicas de gênios (…) Mas, formados da mesma matéria da qual são feitos os sonhos, o que são eles perto da mansão do desespero, a um canto da qual Maria se sentava, esforçando-se por relembrar seus pensamentos dispersos!” Assim Mary Wollstonecraft inicia Maria, or The Wrongs of Woman, que escreveu por volta de 1791. Talvez tenha sido ela a primeira mulher, de uma extensa linha de descendentes, a usar o asilo como cenário para um romance.

Para Wollstonecraft, a verdadeira mansão do horror e desespero seria o asilo onde Maria foi trancafiada por um marido tirânico. A mansão do horror, nos detalhes, se assemelha ao castelo. Tem grades de ferro nas janelas, algemas, carcereiros cruéis e os gemidos e risadas estridentes das companheiras. Os terrores e perigos não deveriam, segundo Wollstonecraft, ser procurados na fantasia, mas na realidade da vida da mulher. “O mundo não é uma vasta prisão”, pergunta, “e as mulheres não nascem escravas? (apud Moers:1976)

Como se respondendo a essas perguntas quase duzentos anos depois, em 1965, Maura Lopes Cançado afirma em Hospicio é Deus : “Ninguém entendeu esta internação a não ser eu mesma; necessitava desesperadamente de amor e proteção (…) O sanatório parecia-me tão belo e romântico. Havia um certo mistério que me atraia.”

O mistério, o desconhecido, se torna logo dor, pois o hospício é o branco sem fim, e o arrancar do coração a cada instante. “Hospício é não se sabe o que, porque é deus”. Neste livro não é um marido, um pai ou um vilão qualquer que aprisiona uma esposa, uma filha ou uma donzela. É uma jovem, ela mesma, que opta pela insanidade, não conseguindo viver no mundo, nem abandonar o asilo/castelo de onde narra as peripécias de sua vida num texto definido como diário. Usa, no entanto, técnicas narrativas ficcionais, círculos concêntricos com digressões significativas, disjunções irônicas entre perspectivas diferentes para o mesmo evento. Usa prosa e verso, descreve delírios coerentes sem nunca devassar sua intimidade. Entremeia as seqüências com citações de escritores ou pensadores e busca sempre referências escritas, até mesmo os diagnósticos, sugerindo, talvez, mais do que muitas novelas, um trabalho literário consciente. A autora-personagem se faz e desfaz numa linguagem elaborada que ela própria diferencia do que escrevem suas companheiras e que ninguém, nem ela, consegue entender.

Lopes Cançado nasceu em Minas numa família tradicional. Casou cedo, descasou. Teve um filho. Queria ser piloto. Foi para a cidade, para o Rio, para as festas e boemias. Tornou-se jornalista e escritora elogiada e entremeia menções de terceiros a seus textos na feitura do diário, misturando tudo isso com fatos da época, comentários, muitas vezes rudes e cruéis, sobre os amigos. É cruel especialmente consigo mesma, impiedosa. É provocadora e agressiva, assustada: “sinto medo do que pode tomar conta de mim”. Fala das companheiras e das carcereiras. Do dia-a-dia na “cidade triste”.

A certa altura afirma : “Gostaria de ter uma vida como a de Emily Brontë. Assim poderia escrever muito (…) Só sou autentica quando escrevo.” Mas, continua, “sou preguiçosa.” Este é o movimento constante do diário; querer/negar, começar/parar. O que a atraiu em Emily Brontë? Esta não teve uma vida longa, nem mesmo feliz. Mas escreveu versos excelentes e um livro marcante que é um novo mito moderno, O Morro dos Ventos Uivantes. Talvez esta seja a fonte do mistério romântico de Maura Lopes Cançado. O livro de Brontë sempre esteve envolto numa aura de mistério, assim como a escritora. É um romance incandescente, enigmático e curiosamente sem precedentes. Uma história onde somos introduzidos num mundo onde os homens lutam pelos favores de mulheres aparentemente de espírito mais elevado e independente. Onde Catarina, em sua loucura, 6 sa. Uma novela que atraiu a atenção por ser cruel ao mesmo tempo em que parecia esconder, sob a superfície, complexas verdades ontológicas.

Estaria Lopes Cançado tentando construir algo parecido? O mesmo sentido de orfandade e destituição pode ser apreendido nos dois livros. A mesma busca da origem na infância: Maura aos cinco anos aprende a ler, descobre que é sensual e Deus se lhe afirma em razão desse “mal”. Esses temas recorrem no diário como se estivesse buscando a resposta que Brontë elaborou para a razão da narrativa tradicional da queda de Eva. Para as duas o céu, absurdo e frio é o inferno.

Mas há diferenças entre os textos das duas escritoras. Brontë empreendeu a revisão radical da queda mítica através da ficção. Relacionou suas personagens, repetiu umas nas outras como se estivesse discorrendo sobre o perigo de ser assombrada por diferentes versões do eu. Maura, criança inteligente, perplexa e só, inventou, desde cedo, histórias exóticas sobre si mesma. Continuou a fazê-lo, mas “nada acontecia a não ser eu, me repetindo, dia a dia” (p.39). Assombrada pelo mesmo, ataca os liames da tradicional sociedade mineira, mas não empreende sua revisão. Inverte os lugares da vida, rompe a diferença entre verdade e mentira. Ela e as companheiras, mulheres despojadas, despem-se quando querem. Mordem. Cantam. Não choram. “Nós mulheres soltas que rimos doidas por trás das grades – em excesso de liberdade”.

Encerradas, segregadas, as mulheres de Lopes Cançado não encontram sua articulação embora o enraizamento no corpo seja uma linguagem. Como a de Joana, personagem de um canto seu de O Sofredor de Ver, que catatônica, presa a um quadro cinza, fica à espera da forma de expressão e “Pensa desesperada: será o inicio da nova língua, agora que estou desmoronada?” Não há resposta.

Em Maura Lopes Cançado a metáfora da “louca no sótão” se tornou experiência existencial. Ampliou-se o espaço da raiva e da ansiedade, o sótão se fez prédio, e dependências e sociedade envolvente. Por isso mesmo a liberdade protegida atrás das grades, a liberdade está na escrita. Articulação, expressão, compressão. A autora, enredada em suas tramas, confinada, cega e silenciosa, torna-se personagem de uma história de aprisionamento sem escape, urdida por ela própria.

Publicado in ESCRITA (Revista de Literatura) Ano XIII – nº 39 – 1988, pp.22-26, com o título “Sonhos e iluminações das mulheres loucas da literatura” e ilustrações.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Julia Lopes. Elles e Ellas. Rio de Janeiro: Francisco Alves & Cia e Aillaud, Alves & Cia. , 1913.

CAMPBELL, Joseph. Mysteries, Dreams, Religion. New York: Duiton,1970.

CANÇADO, Maura Lopes. Hospício é Deus. Rio de Janeiro: José Alves, 1965.

____________________. O sofredor do ver. Rio de Janeiro: José Alves, 1968.

GILBERT, S. e GUBAR.S. The Madwoman in the Attic. New Heaven: Yale University Press, 1979.

MOERS, Ellen. Literary Women. New York: Doubleday, 1976.

MORAES Filho, Nascimento. Maria Firmina, fragmentos de uma vida. São Luis: edição do autor, 1975.

REIS, Maria Firmina dos. Ursula. Rio de Janeiro: ed. Fac-semilar, 1975.

SHOWALTER, Elaine. A literature of their own. Princeton: Princeton University Press, 1977.

TELLES, Norma. Encantações. Puc-SP, 1987, mimeo.

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