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Rebeldes, Escritoras, Abolicionistas

Norma Telles

As navegações e conquistas ibéricas do século XVI foram obra de machos, navegantes, conquistadores, soldados, povoadores. De padres, bandeirantes e senhores de engenho. Homens agressivos que empregavam a força desligada de toda noção anterior de ordem, que exerceram um poder arbitrário. É certo que algumas mulheres, por conta própria, tentaram “fazer as Índias”. Viajaram clandestinas, mas, fora algumas honrosas exceções, foram perseguidas, caçadas e publicamente castigadas. Afinal, não deviam nem podiam viajar sem licença do pai, da autoridade, do rei, assim como não deviam ter grandes ou pequenas ambições(1).

A conquista, obra de machos foi, no dizer de Octavio Paz, uma violação não só no sentido histórico e territorial, como também, literalmente, na carne das índias(2). A figura exótica deu o toque erótico às paragens desconhecidas. No imaginário dos colonos as florestas verdejantes e a terra fértil, o ouro e os diamantes, misturavam-se com a possibilidade da melhor vida sexual de sua existência com mulheres a priori consideradas diferentes: promíscuas, provocantes, oferecidas, eram assim retratadas as índias nas representações da época.

A violação, no entanto, era parte integrante do universo do guerreiro português desde as guerras contra os mouros. Usada como instrumento político de subjugação, continuou sendo empregada como reafirmação do poder viril do senhor branco. É paradoxal, mas o sexo que poderia ser meio de contato entre os grupos, se tornou um obstáculo para o reconhecimento do outro como um humano igual. As representações estereotipadas colocavam sempre a sensualidade, o polimorfismo, a falta de freios ameaçadora dos bons costumes, nos grupos submetidos. Na colônia portuguesa do Brasil o comportamento promíscuo foi projetado pelos brancos primeiro nas índias e, mais tarde, nas negras africanas, na mulata dita a mais sensual. O homem branco permitia-se a violação porque reforçava sua boa intenção com o ideal da esposa branca, fiel, tarefeira, assexuada, ignorante e trancada em casa.

Violência física e restrição material e mental estiveram presentes então na vivência cotidiana da colônia. A violência maior, no entanto, era a limitação de possibilidades de ação e pensamento. O homem e a mulher brancos, o escravo e a escrava, não eram sujeitos iguais com consciências iguais porque estavam em situações e locais diferenciados na sociedade. A partilha de valores e idéias também era desigual, pois não recebiam o mesmo quinhão de informações a respeito do patrimônio cultural(3).

De maneira geral, o sistema e suas exigências marcaram a existência e as relações dos grupos, embora em casos individuais algum traço de solidariedade pudesse unir indivíduos singulares. É claro que quando se coloca a questão de diferentes códigos e padrões numa sociedade se coloca também a questão da transgressão. Transgressão esta que não era bem tolerada pelo corpo social.

A conquista, pois, produziu uma cultura profundamente dividida onde a violência do choque entre vencedores e vencidos presidiu tanto aos acasalamentos quanto as representações coletivas. Uma cultura de caráter acentuadamente masculina, racista, e eminentemente verbal. Uma cultura dos púlpitos e dos serões familiares. A literatura, que aos poucos foi ganhando traços locais foi escrita e lida, em geral, por homens, embora uma ou outra poeta seja já conhecida no século XVII. No século XIX, quando a urbanização formou camadas médias e leitores, a mulher tornou-se parte integrante do público e dos praticantes do ofício. Na literatura dos Oitocentos, as sinhás do período colonial eram retratadas como lânguidas, complacentes, dependentes e caprichosas. Na realidade, a mulher no novo mundo desempenhou muitos papéis e atividades diferenciadas, não prescritas, até mesmo transgressoras(4). Entre eles o de escritora.

Para a mulher escrever dentro de uma cultura que define a criação como dom exclusivamente masculino, e propaga o preceito segundo o qual para a mulher o melhor livro é a almofada e o bastidor, é necessário rebeldia e desobediência aos códigos culturais vigentes. O ato de escrever implica numa revisão do processo de socialização assim como das representações conscientes; implica também em um enfrentamento do inconsciente invadido pela situação objetiva de dependência do homem e que condicionava desta perspectiva a formação do eu(5).

As mulheres que no século XIX tomaram a pena e escreveram, como lidaram, perceberam, pressentiram e se ressentiram da situação de dependência? De vários modos, e muitas vezes se identificaram com as vitimas da opressão. Ellen Moers descreve como as mais bravas dentre as escritoras de língua inglesa, ou francesa, se colocaram na defesa dos oprimidos, em especial dos escravos(6). E o mesmo ocorreu no Brasil. Nossa literatura abolicionista é escassa. Considera-se que os debates que a partir do século XVIII inflamaram a Europa contra a escravidão, tiveram fracos ecos entre nós. Até a década de 70 do século XIX, são poucos os escritos abolicionistas mencionados nas antologias. Nunca nelas se inclui os artigos, panfletos ou livros de autoria de escritoras. A mulher, no entanto, desempenhou um papel ativo nas lutas contra a escravidão assim como escreveu a respeito dela, fazendo propaganda abolicionista. A inclusão desses textos certamente enriqueceria nossa tradição.

Um autor não lido, sugere Octavio Paz, é vitima de um tipo particular de censura, o da indiferença, que é uma censura efetiva e eficaz. Isso porque uma cultura se define tanto por sua atitude e seus projetos futuros quanto por suas recordações e paisagens do passado(7). As escritoras, em especial, foram entre nós, vitimas desse tipo de censura por isso minha intenção é violar o silêncio que pesa nos últimos séculos sobre autoras abolicionistas brasileiras, examinando, brevemente, os escritos de três dentre elas.

Ursula, de Maria Firmina dos Reis, publicado em 1859(8), é tido como o primeiro romance brasileiro escrito por uma mulher. É considerado um romance ingênuo, cheio de arroubos sentimentais. Sem dúvida, numa primeira impressão, mas uma leitura mais atenta pode nos revelar outras coisas. “São vastos e belos os nossos campos; porque inundados pelas torrentes do inverno semelham o oceano em bonançosa calma”…assim se inicia o livro que transcorre em uma província do Brasil, em qualquer uma pois a paisagem calma não caracteriza nenhum local em especial. O enredo tem elementos Românticos como o amor de dois jovens, a dor e a separação, cenas no cemitério e morte. Mas tem também toques de contos góticos.

Ursula, a jovem que dá nome ao livro, é uma donzela que não está presa em um castelo mas junto a cama da mãe paralítica numa fazenda que pertence ao vilão, seu tio, Fernando, senhor de terras, dos escravos e das mulheres. As aventuras da jovem não se desenrolam em corredores escuros, labirintos com alçapões e sim na floresta, meio a árvores frondosas e estreitas sendas, fugindo do vilão. E é ali, numa clareira na floresta, que ela se refugia para pensar, tomar decisões, procurar, sem muito sucesso, descobrir o que é a vida.

O enredo conta as aventuras de um bacharel da Academia de São Paulo que fugindo das maldades do pai, “tirano de sua mulher”, acaba caindo do cavalo e se ferindo gravemente perto da casa de Ursula. É salvo por Túlio, um escravo, que cuida dele e lhe conta toda a história dos dissabores da moça. Ela é filha de Luiza B., uma menina que crescera e um dia, para desespero do irmão, resolvera se casar. Este, inconformado com a decisão, perseguiu o casal até conseguir arruinar o cunhado e matá-lo. O vilão comprara as dividas do casal e assim tornara a irmã e a sobrinha sua propriedade. De tanto desgosto Luiza B. ficara paralítica e seu único consolo era a filha. Esta, por sua vez, cuida do moço bacharel, Teodoro, o rapaz que caíra do cavalo e, meio aos delírios da febre, os dois se apaixonam.

Porém, o vilão, que por ser irmão da mãe era tio da jovem, também se apaixonara por Ursula. Teodoro conseguiu comprar a liberdade de Túlio que faz de tudo para livrar o casal das garras de Fernando, o vilão. Em vão. O tio mata os dois rapazes, Teodoro e Túlio, o bacharel e o escravo liberto, e se apodera de Ursula. Ela enlouquece e em sua loucura sempre o acusa. Morre o vilão, corroído de remorsos, num mosteiro onde se recolhera, visto que os frades sempre haviam estado a seu lado. E o livro termina, “de todas as vitimas do amor, apenas restam vestígios sobre a terra da desditosa Ursula”. Seu nome gravado numa lápide rasa.

O que mais distingue o livro não é o exagero romântico, ou as peripécias do enredo, mas sim o tratamento que a autora dá aos escravos. Ela não fala do escravo em geral, ou da escravidão como conceito abstrato, mas individualiza o escravo através de duas personagens centrais. A de Túlio, que “sofria porque era escravo” mas cuja “mente ninguém pode escravizar”, e embora fosse tomado pelo “acanhamento que a escravidão gerava”, permaneceu sempre apaixonado pela liberdade e capaz de sentimentos próprios, dignos, desinteressados: de amizade enfim, pois “as almas generosas são sempre irmãs”. E o personagem é um ator importante na trama: salva Teodoro; viaja com ele pelo país; une os dois jovens; toma atitudes e descobre soluções.

À segunda personagem, a negra Susana, é dedicado todo um capítulo onde é narrada a sua vida na África, antes da escravidão, o que, em termos de Brasil e de período, é extremamente original. A paisagem africana não difere muito da brasileira nos esboços da autora, o que não admira, visto o desconhecimento de então sobre aquele continente; ma é calma e bucólica. O que é importante, é que a autora está dando cores próprias à terra natal dos escravos, e ao fazê-lo descreve costumes diferentes apresentados como ideais, idílicos até. Na África Susana fora feliz junto aos seus, e jamais esqueceu aquela felicidade, assim como o dia em que, surpresa, se viu capturada enquanto despreocupada fazia um passeio pela mata.

Ela recorda seu enorme sofrimento quando percebe que será separada dos seus e da viagem através dos mares, infecta e infernal. “Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé e para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como os animais ferozes das nossas matas, que se levam para recreio dos potentados da Europa. Davam-nos a água imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda mais porca: vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros.” Nessas condições os prisioneiros se revoltam e então,”da escotilha lançaram sobre nós água e breu fervendo, que escaldou-nos e veio dar morte aos cabeças do motim.” Susana resiste e para que? Para desembarcar e enxergar outro quadro dantesco, “a dor da perda da pátria, dos entes caros, da liberdade, foram sufocadas nessa viagem pelo horror ao aspecto de meus irmãos.” Seus sofrimentos porém, ainda não haviam findado, escrava do vilão acabará morrendo em suas mãos, torturada e acorrentada num calabouço úmido(9.)

No livro de Maria Firmina dos Reis os escravos falam um português castiço e empregam sem erro o tratamento vós. Isto foi criticado por alguns críticos como inverossímil. Porém, não estaria ela através do emprego de um universo linguístico idêntico, observando que eram iguais embora diferentes? Contratando com os arremedos de fala dos escravos, ou dos caboclos, que aparecem em tantos livros, uma fala quase infantil ou idiota muitas vezes, este emprego da mesma língua para dois grupos étnicos aproxima os personagens. E mais, ela mostra os escravos, através de Túlio e Susana, como detentores de um código de valores e sentimentos próprios, diferentes, mas nem por isso menos ético do que o dos brancos. Em várias passagens Ursula se identifica com Túlio e, em dado momento, chega mesmo a invejá-lo, pois por ser homem e já liberto ele pode viajar com o bacharel enquanto ela, por ser mulher, tem de ficar em casa, e gostaria tanto de viajar com o amado!

No livro os homens são tiranos e as mulheres são impotentes para alterar a situação, só fazem chorar. A mãe de Teodoro é tiranizada pelo pai, Luiza B. e Ursula pelo vilão. A preta Susana, por sua vez, só é tiranizada pelo senhor do qual os escravos não conseguem fugir. O elo afetivo forte é entre mãe e filha, mas deságua na impotência das lágrimas inúteis. Ou na amizade que une o liberto e o bacharel, amizade esta original nas representações literárias do período. Outro elo forte é entre Susana, Túlio e a liberdade. A trama não tem desfechos possíveis além da morte de todos os seus personagens, pois a sociedade na qual poderiam viver felizes para sempre ainda estava muito distante, não existia, não e esboçava. Restou uma lembrança gravada na pedra, Ursula, um nome por fazer, uma vida por viver, uma vida cuja história própria decorreu da negação dos desejos do vilão que acabam culminando com sua extinção meio a loucura.

Maria Firmina, que foi escritora, jornalista, musicista e professora primária de uma classe mista e gratuita em Guimarães, Maranhão, escreveu ainda outro conto sobre o tema da escravidão. “A Escrava”, de 1887(10), é narrado por uma personagem integrante de uma das sociedades abolicionistas da época. Mostra a rede que se formara para rapidamente acolher e comprar a liberdade de escravos fugidos. Aqui sua personagem tem história, vida própria, age com astúcia para enganar feitores e senhores. No entanto, não tem nome, permanece incógnita.

Maria Firmina morreu bem velha; foi descrita como tendo pele escura, cabelos grisalhos presos em um coque. Era muito querida e apreciada em sua cidade onde é mais lembrada como mestra das primeiras letras do que como escritora. Mas foi também escritora e deveríamos sempre lembrar sua defesa do escravo, a coragem de seus argumentos e a dignidade que concedeu a suas personagens. Ela enfatizou os castigos injustos, a péssima condição da vida dos escravos com o objetivo, comum em outros autores que não ei se conheceu, de comover o leitor. Em termos de Brasil, suas preocupações e o modo que as colocou são precoces e incomuns.

Em artigo recente, Flora Sussekind lembra que até o final da década de 1840, a literatura abolicionista era praticamente inexistente. A presença do negro na literatura era muito discreta e quando aparecia ele era pintado como “cão fiel”. Dez anos após a publicação do livro de Maria Firmina dos Reis, Joaquim Manuel de Macedo trouxe à luz um livro que ficaria famoso, Vítimas e Algozes, que se pretende a favor da emancipação. Persiste nele a animalização do negro embora a adjetivação tenha mudado. No período, crescera a presença negra no imaginário político – e, por conseguinte, no literário – das camadas dominantes. A crise do açúcar encetara a decadência do produto, a partir dos anos 1860, e as idéias liberais ganharam terreno. O “cão fiel” se tornou então uma “serpente”. Retratado como incapaz de sentimentos, ou como vivendo um arremedo de amor e fidelidade, o negro era retratado como alguém de quem se devia desconfiar, era considerado dissimulado, ameaçador e capaz de constantes traições.

No livro de Macedo os senhores são gentis, ingênuos e não desconfiam das maldades das “serpentes”. Macedo acentua o perigo negro e a ingenuidade branca. Para que os negros não se tornassem lobos ameaçadores pregava, estratégia comum na época, a coesão branca(11). O estudo de Sussekind acentua, comparativamente, a singularidade de Maria Firmina dos Reis dentro do que se pensava e escrevia na época e a atenção que deu à questão faz dela merecedora de nossa recordação e não do castigo/censura do esquecimento para o qual foi banida e onde tem permanecido esquecida.

Nas décadas de 1870, o panorama já se alterara e a campanha abolicionista ganhara terreno. Castro Alves incendiava os corações com seus versos inspirados que fantasiavam a liberdade e dignidade de um povo. Essa mesma década foi marcada pelo medo da guerra civil, das insurreições, dos atentados. Este medo não era pura fantasia, derivava da observação dos fatos, das insurreições cada vez mais frequentes, das fugas organizadas de escravos. Em 1875, Bernardo Guimarães publica A Escrava Isaura, romance famoso e de sucesso, onde retrata a escrava como branca, erótica e sensual. Foi nesse período também que outra escritora lançou seus versos contra a escravidão.

Narcisa Amalia de Campos (1863-1924) foi professora, escritora e jornalista. Tornou-se conhecida por volta de 1870 através de publicações em jornais da Corte e das províncias. Seu livro de poemas, Nebulosas, de 1872, teve boa repercussão. Morou em Rezende, depois no Rio de Janeiro, e foi uma batalhadora incansável pelos direitos da mulher, uma democrata radical e, por isso mesmo, abolicionista. Para ela, o ideal do século, a Musa Inspiradora, era a Liberdade que, sonhava, talvez num futuro não muito distante permitiria aos povos, aos homens e às mulheres, viverem livres de violência, opressão e injustiças.

Em versos traçou o “quadro hediondo” da escravidão, narrou os sofrimentos “dos míseros cativos”. “Meu Deus! ao precito/ Sem crenças na vida,/ Sem pátria querida,/ Só resta tombar!” O escravo, outrora “’um bravo em sua terra, permanecia curvado ante um falso poder” e era preciso partir os grilhões, quebrar as algemas. Era preciso que “esta raça, que genuflexa rebrama” se erguesse “de pé ungida, das crenças livres…”, pois então o anjo da liberdade, tendo descido, “de infelizes escravos/Fez talvez dez homens bravos,/Talvez dez outros heróis“(12).

A pátria não poderia ser independente, nem se constituir como nação plena enquanto persistisse a nefasta instituição, enquanto todos os direitos não fossem restituídos. Narcisa Amalia contemplava com desgosto e tristeza o “espetáculo desolador dos costumes pátrios” e não era uma otimista em relação à situação. Acreditava que seria preciso lutar e conclamou à rebeldia e à revolução. Essas ideias lhe valeram severas criticas de contemporâneos. Uma moça escrever versos de amor, vá lá, mas meter-se em política! Isso não!

Narcisa Amalia acreditava no poder da escrita, acreditava que a imaginação literária poderia construir uma ponte de simpatia e compreensão por sobre o abismo de intolerância entre os grupos. A imprensa, especialmente, era vista por ela como instrumento privilegiado, pois criara novas esferas de atividade para a “educação coletiva” e a “modificação das emoções”. A imprensa já servira a outras revoluções, diz ela, tanto às cruentas quanto as pacíficas e poderia, portanto, ser um meio de luta pela harmonia social. A propaganda oral, pensava, embora fosse muito importante, não tinha o mesmo peso e a mesma penetração que a imprensa. Esta, através de uma ação lenta, contínua, constante, poderia fazer, dos espíritos mais retrógados, “prosélitos apaixonados”. A comprovação dessa hipótese ela encontrava em José do Patrocínio, a quem admirava e por quem era admirada, e na influência que exerceu através de seu jornal durante a década que precedeu à Abolição.

O interessante é que Narcisa Amalia, que demonstrou um radicalismo cônscio e vigoroso contra todas as formas de tirania, não se deixou iludir pela modificação institucional. Em 1889, publica “Condolência” onde se mostra descrente das reformas empreendidas e da Abolição porque não antevê a possibilidade do povo se instruir “nos mistérios da igualdade” através do acesso a uma educação democrática. Como pode, pergunta, “águia cativa/ Subtrair-se à inércia que estiola/ Soerguer-te do nada ¬rediviva?…” se da ciência não lhe vem amparo e se “abrem-te a detenção, fecham-te a escola!"(13).

No final da década de 1880 a escravidão, devido a várias causas que não cabe elencar aqui, se desintegrava. Os fazendeiros já se admitiam incapazes de impedir as constantes fugas e surgiram, em São Paulo, os caifazes, que ajudaram e organizaram fugas em massa. Entre eles destacou-se Antonio Bento que a celebrada escritora Julia Lopes de Almeida(1862-1934) homenageou em um romance que escreveu em 88 mas que só foi publicado depois da Abolição.

A Família Medeiros(14) é um livro abolicionista cuja trama romanesca se desenvolve em torno de um enigma, um assassinato, e um mistério: a identidade do instigador de uma revolta de escravos. O livro se passa no estado de São Paulo e fornece um quadro rico em detalhe a respeito da vida nas fazendas durante o período de mudança do regime de trabalho.

Otávio Medeiros, moço engenheiro, volta para a fazenda depois de ter se formado na Alemanha e se espanta com a falta de modificações que constata na fazenda do pai. O velho Medeiros é um escravocrata, um patriarca que domina a família toda, menos a sobrinha a quem tem horror, “um diabo levado de seiscentos”. O nome dela é Eva, uma moça instruída, com idéias próprias e por isso acusada pelo tio de instigar todas as fugas de escravos. Eva é uma heroína assertiva, rebelde; tivera educação invulgar, falava várias línguas; entendia tudo a respeito de plantações e plantios; sabia como administrar uma fazenda de modo moderno. Com parte da herança que recebia anualmente depois da morte do pai, ela comprava a alforria de alguns escravos pois era também abolicionista.

O livro focaliza o momento de transição entre o trabalho escravo e o livre nas plantações de café e se desenrola meio à opulência e prosperidade dos plantadores e a miséria das condições de vida dos escravos e dos primeiros colonos. É uma propaganda abolicionista onde se pinta os horrores dos castigos e do tratamento dos escravos como carne humana. É também um libelo em favor do trabalho livre em pequenas propriedades. A personagem terna e afetiva é representada pela figura da mãe preta, uma paralítica, que ajuda Otavio, o filho adotivo. Este é um personagem apagado; é ferido durante uma revolta de escravos e passa a maior parte do romance na cama. Eva é o móbil da ação.

Dois episódios se destacam, cenas fortes: o linchamento de um juiz e a fuga dos escravos pela serra de Cubatão. O juiz, que Morava em Sertãozinho, seguia a orientação jurídica abolicionista proposta por Luiz Gama e concedia liberdade aos cativos baseando-se em provas legais. Os fazendeiros, descontentes com esse procedimento, organizam um ataque, contratam capitães-do-mato e assassinos profissionais que emboscam o juiz, arrancando-o do quarto durante a noite e o matam a pancadas. A seguir mutilam seu corpo e destroem sua casa. Esse episódio pode ou não ter sido inspirado em fatos reais, mas o segundo, a fuga dos escravos, é uma reconstrução ficcional detalhada de um episódio real que foi muito comentado nos jornais quando um grande número de escravos escapou das.fazendas e fugiu pela serra de Cubatão.

A questão central no livro de Julia Lopes é a oposição entre Eva/velho Medeiros, a fazendeira moderna e o fazendeiro escravocrata ultrapassado que, no entanto, não se deixa convencer a mudar. Eva é favorável a pequena propriedade trabalhada por colonos bem tratados e administrada por métodos modernos em contraposição a grande propriedade monocultora, trabalhada por escravos. Ao colocar num dos polos a personagem Eva a autora está-enfatizando o papel da mulher na perpetuação ou não da instituição (há outros comentários no livro a respeito deste item). A justiça no contexto pessoal exige a justiça no contexto social. Para Eva o horror a escravidão advém não só de sua desumanidade como também do nexo de dinheiro, dos lucros nas operações de mercado.

Julia Lopes de Almeida tem Eva como ideal; instruída, segura, morando numa casa sóbria, por isso bela, administrando racionalmente a propriedade e tratando os colonos com comiseração e consideração. Em vários outros livros a autora retomará esses tópicos, a saber, a idéia da mulher capaz de plantar racionalmente para sua sobrevivência e proveito, a pequena propriedade fornecendo uma oportunidade de atividade autônoma e independente.

No percurso deste texto relembramos três autoras, três escritoras, mulheres rebeldes com ideias próprias, vivendo numa cultura profundamente dividida, uma cultura patriarcal, racista e misógina em três momentos diferentes. Mesmo assim, elas escreveram sobre as condições da sociedade, sobre a escravidão e defenderam a abolição, a modificação das condições sociais. Outras poderiam ter sido lembradas, mas ao encerrar gostaria simplesmente de assinalar que as autoras citadas, a despeito de suas diferentes concepções de mundo, não empregaram as metáforas da escravidão para enfatizar somente a vitimização, mas as utilizaram para assinalar o perigo da repressão, da revolta e da vingança, contidos numa vida sem dignidade ou sem história própria. Por isso, nas três escritoras encontramos, em diferentes versões, o mesmo amor pela liberdade, a mesma tentativa de alcançá-la.

*Este texto foi publicado na Revista de História, nº120. São Paulo:USP, Janeiro-Julho, 1989, pp. 73-83.

NOTAS

(1) Charles Boxer, A mulher na expansão ultramarina Ibérica. Lisboa: edições 70, 1981.

(2) Octavio Paz, El labirinto de la soledade. Mexico: Fondo de Cultura Economica, 6ª Ed., 1978.

(3) Ver Nicole-Claude Mathieu, “Quand céder n’est pas consentir », in Nicole-Claude Mathieu, L’arraisonnement des femmes. Paris : EHESS, 1985.

(4) Ver Maria Odila Leite da Silva Dias, Quotidiano e Poder. São Paulo: Brasiliense, 1984.

(5) Ver Norma Telles, Encantações: escritoras e tradição literária no Brasil, século XIX. São Paulo: PUC-SP, tese doutorado, 1987, mimeo.

(6) Ellen Moers, Literary Women. New York: Doubleday, 1976.

(7) Octavio Paz, Soror Juana Ines de la Cruz. Mexico: Fondo de Cultrua Economica, 1985.

(8) Maria Firmina dos Reis, Ursula. Rio de Janeiro, edição fac-similar, 1975.

(9) Maria Firmina dos Reis, Ursula, op.cit., capitulo IX.

(10) Em Nascimento Morais Filho, Maria Firmina, fragmentos de uma vida. São Luiz: 1975.

(11) Flora Sussekind, “A Abolição” in Folhetim, Folha de São Paulo, maio de 1988.

(12) Narcisa Amalia, “O Escravo” in Antonio Simões dos Reis, Narcisa Amalia. Rio de Janeiro: Organizações Simões, 1949.

(13) Narcisa Amalia, “Condolência” in A Mensageira. São Paulo:Imprensa Oficial, 2 vols., 1987.

(14) Julia Lopes de Almeida, A Familia Medeiros. Rio de Janeiro: Fluminense, 1892. Uma segunda edição deste livro foi publicada pela Editora Mulheres em 2009.

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