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Susan Sontag – Diagnosticando um mito

Norma Telles

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Susan Sontag

O câncer – como a tuberculose antes dele – é uma magnífica cidadela de metáforas. Patologias misteriosas, uma no passado outra até o presente, elas abalam nosso sentido de vida, a pretensa felicidade e imortalidade dos indivíduos da sociedade industrial. Neste livro, a escritora americana Susan Sontag visita essa cidadela, fazendo desmoronar suas sólidas paredes de mitos e estereótipos, assim como desmistifica o uso da doença no discurso cotidiano e político.

As duas metáforas – a tuberculose e o câncer – examinadas pela autora apresentam semelhanças, mas suas diferenças são flagrantes. Percorrendo a literatura, Susan Sontag lembra, por exemplo, que no século passado a tuberculose dignificava suas vítimas. Tida como resultado da exacerbação das paixões, a doença atestava o caráter nobre e sensível de seu portador. Espiritualizava. O tuberculoso é, nessa época, o inefável desajustado romântico. O mito chegou a produzir uma teoria da criatividade. Mais: produziu um modelo de vida boêmia, de estética, de maneiras aristocráticas.

Em contraste, o câncer, no século XX, não é nada dignificante. Muito ao contrário. Suas associações são com o corpo. em geral com partes cujo reconhecimento é embaraçoso. A morte que ele provoca, acredita-se, é angustiante e ignóbil. Não há transcendência – imagina-se que a vítima é humilhada pelo medo, pela dor, pela agonia. Os julgamentos são morais e punitivos. O câncer não é assunto de poesia, raramente de romance. Por outro lado, é usado como metáfora na linguagem cotidiana e por todos os matizes do discurso político, conotando, no primeiro caso, repulsa e, no outro, fatalismo, a exigir medidas severas. A linguagem do diagnóstico e do tratamento não é neutra, é militar. O mal, escreve Susan Sontag, é concebido como inimigo contra o qual a sociedade trava sua guerra.

A psicologia também contribui para a mistificação. Segundo certas correntes, o câncer seria o resultado da repressão de instintos vitais_ Seria fruto da inibição de paixões. O doente torna-se culpado (inconsciente) pela patologia e responsável pela cura. São argumentos pseudocientíficos que, uma vez mais, afirmam o primado do “espírito” sobre a “matéria”. Como se não bastasse, crenças populares atiram ainda sobre o canceroso a insinuação de que sua doença é “a síntese do mal”, uma “gravidez demoníaca-. Só lhes resta o desespero.

Nascido de uma vivência pessoal, este ensaio de Susan Sontag não é, contudo, um depoimento, e sim uma reflexão que busca a desmistificação do câncer. As palavras finais do livro são otimistas. A escritora afirma que a metáfora já está mudando, na medida em que evoluem o conhecimento e as formas de tratamento, e “se tornará obsoleta ( …) muito antes que os problemas por ela refletidos ( …) tenham sido resolvidos”.

IstoÉ 19/12/1984

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